Na morte de Luís Dantas a tertúlia Rio de Prata está mais pobre, por Julião Bernardes

 

Na morte de Luís Dantas a tertúlia Rio de Prata está mais pobre, por Julião Bernardes



Julião Bernardes



No passado dia 23 de Maio [de 2011] surpreendeu-nos um telefonema de Joaquim Evónio com a inesperada notícia do falecimento do nosso comum amigo Luís Dantas. Mais novo que nós dois uns 6 ou 7 anos, nada fazia prever que o Luís nos abandonasse tão cedo.

Luís Dantas foi um dos 5 fundadores da tertúlia Rio de Prata, no ano de 1992, com outros 2 limianos, também já falecidos – João Marcos (Rebordões, 1923/Lisboa 2005) e António Manuel Couto Viana (Viana do Castelo, 1923/Lisboa, 2010) –, Ulisses Duarte (Matosinhos, 1923/Lisboa, 2007)  e Luís Graça, este felizmente ainda vivo.

Luís Augusto de Sousa Dantas nasceu a 3 de Agosto de 1946, em Ponte de Lima. Licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa, foi professor no ensino secundário até se ter reformado recentemente, para se entregar à investigação.

Tem colaboração dispersa em jornais e revistas, em prosa, poesia e trabalhos sobre história. Em poesia publicou dois livros, ambos em edição de autor: Pedras Verdes, Ponte de Lima, 1970 e Bolero, Lisboa, 1974, obras que mereceram palavras de louvor de reconhecidos nomes das nossas letras, como João Marcos, Pedro Homem de Mello e Alfredo Guisado. Bolero teve, aliás, segunda e terceira edições, em 2000 e 2006. Não tive acesso ao livro, mas basta este pequeno poema, integrado num conjunto de haikais para apreciarmos a qualidade poética do seu autor:

Não foi o corpo   e tu

bem sabes rapariga:

 

deitei-me apenas ao

lado dos teus olhos.

 

No âmbito da História publicou os seguintes livros, todos pela Ceres (editora fundada por si há mais de vinte anos, na qual deu voz a diversos autores, sobretudo em poesia):

- Ponte de Lima na Revolução de 1383, Ponte de Lima, 1993;

- A Água nas Primeiras Civilizações, Lisboa, 1999;

- O Vinho nas Primeiras Civilizações, Lisboa, 1999;

- Viagens e Descobertas, Atlântida, Lisboa, 1999;

- A Revolta da Maria da Fonte, Lisboa, 2000;

- Os Garranos da Península Ibérica, Lisboa, 2002;

- O Cinema Olympia em Ponte de Lima, Ponte de Lima, 2006;

- e o ensaio Bocage no seu Tempo, Lisboa, 2001.

 

Publicou também, pelas edições Baco, em 2006, o livro A Vaca das Cordas em Ponte de Lima.

E ainda os seguintes títulos:

- A Arte e a Guerra 1914-1918, em 2008;

- Os Limianos na Grande Guerra, 2008;

- António Feijó, a Boémia Estudantil e os Primeiros Versos, em 2009.

 

Para além disso prefaciou livros de António Manuel Couto Viana, João Marcos, José Ernesto Costa, Joaquim Evónio e Armando Taborda e fez recensões a livros de prosa e de poesia, nomeadamente de Joaquim Evónio, Armando Taborda e Alice Fergo.

Colaborou nos livros colectivos da Tertúlia Rio de Prata, Homenagem a Ferreira de Castro e Florilégio de Natal 1999. No primeiro com um texto em prosa e no segundo com o poema que se transcreve:

Venderam os bois, o linho

o perfume das arcas

e partiram.

 

Crianças de susto

mulheres de canto

estrelas sem luz.

 

Dezembro, dezembro...

Faz muito frio

em dezembro.

 

Com Luís Dantas desaparece do nosso convívio o último dos Limianos fundador da tertúlia Rio de Prata. Conheci os três em 1994, ao entrar para a tertúlia a convite de Ulisses Duarte. Nessa época seríamos uns vinte e tal tertulianos e reuníamos às tardes das sextas-feiras, no restaurante Rio Prata; daí o nome da tertúlia. O restaurante pertencia a um minhoto, o Sr. Zé, mas não seria por esse motivo que foi o local escolhido para os convívios, antes pelo facto de se situar do outro lado da Avenida de Visconde de Valmor, quase em frente ao nº. 37, número da morada de Ulisses Duarte, um dos fundadores da tertúlia e o seu principal motor (hoje, no mesmo local existe o Gran Caffé, um self-service de qualidade).

Luís Dantas, à semelhança de João Marcos, tinha um ar sorumbático, sisudo, tipo cara de poucos amigos, mas era amigo com quem se podia contar. Ambos de poucas falas, quando o assunto lhes interessava como que ganhavam vida, traziam ao rosto, à boca e aos gestos a vitalidade que os animava, dando conta dos seus conhecimentos, por vezes com uma contida agressividade, sobretudo João Marcos - o seu corpo franzino como que se dilatava no empolgamento das suas convicções. Depois, quase de seguida se remetia novamente ao silêncio. Dos três limianos, Couto Viana era o mais expansivo, e também aquele que, através do teatro e da poesia, ganhou maior destaque e reconhecimento a nível nacional.

Terá sido o tempo que passou na Guiné que lhe modificou o temperamento (um amigo de infância faz referência à facilidade com que o sorriso lhe despontava no rosto)? Luís Dantas entrou como voluntário para a Força Aérea, em 3 de Outubro de 1966, em plena guerra colonial, tinha pouco mais de vinte anos. Na Força Aérea especializou-se em Abastecimentos, tendo sido mobilizado para a Guiné, onde permaneceu, na Base Aérea nº. 12, em Bissau, de 15 de Janeiro de 1968 a 10 de Setembro de 1970. Foi condecorado com a Medalha Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas na Província da Guiné, legenda 1968/1969 e com a Medalha de Cobre de Comportamento Exemplar. Após o regresso ao Continente foi colocado na Direcção-Geral de Material da Força Aérea, onde permaneceu até 8 de Maio de 1972, data em que transitou para a Base Aérea nº 6. Foi daqui que passou à disponibilidade, em 1 de Outubro de 1972, após ter cumprido o contrato de 6 anos.

Pois Luís Dantas frequentou a tertúlia com regularidade nos anos 90, contrariamente ao que sucedeu nos últimos dez ou onze anos, em que só esporadicamente aparecia e não era fácil de contactar. Mas surpreendia-nos com frequência, como foi o meu caso, desta última vez com uma recensão de muita sensibilidade, ainda que breve, a um dos meus livros, O Corpo na Vertigem, publicado, creio, em 1999. De outra vez, e sem que nada o justificasse, presenteou-me com um trabalho por si efectuado, em computador, sobre uma fotografia minha; aproveitei-o de imediato, sendo essa sua expressão artística que consta da contracapa do meu livro Do Amor e do Tempo. Na Varanda das Estrelícias (espaço aberto onde Joaquim Evónio mostra muito da criatividade de prosadores, poetas e artistas plásticos de vários continentes) aparecem alguns trabalhos de sua autoria, referentes a touradas, onde a sua sensibilidade de proporções e cores transparece.

Tenho a certeza de que o texto que mais prazer lhe deu a elaborar foi o que escreveu na Introdução ao livro Os meus Primeiros Desenhos, publicado pela Ceres em 2006, uma recolha dos desenhos efectuados por sua filha Catarina, desde a mais tenra idade. Nele Luís Dantas escreveu uma lindíssima introdução, um texto de seis páginas de saber e sentir, o qual, para além de deixar transparecer o carinho especial que nutria por sua filha, muito nos elucida quanto à sua sensibilidade, elevação de espírito e conhecimentos.

Alguns excertos:

“Os primeiros desenhos são como os das outras crianças: mostram como começa a aventura do acto criador. Existe nestes traços uma realidade oculta ou um sincretismo visual, uma expressão inconsciente, relâmpagos da vida espiritual, um estilo e uma poética que se aproximam dos quadros abstractos de Kandinsky. Mas a linguagem de conteúdo simbólico não deixa de estar presente. As emoções, não todas, são perceptíveis no momento lúdico. A pressão da mão sobre o suporte (dura ou macia), a expressão do rosto (alegre ou triste) e a escolha das cores deixam transparecer instantes de sossego ou de desassossego e representam cenas vividas e fechadas em signos mágicos e primitivos.”

Mais à frente:

“Nos seus primeiros desenhos em busca de objectos a recriar, a Catarina não abandona ainda as garatujas do seu mundo onírico porque a transição não se faz com rupturas bruscas, mas vai introduzindo outras formas que parecem reinventar alguns aspectos da arte parietal ou do interior das cavernas que nos foi transmitida há mais de catorze mil anos.”

Ainda mais à frente:

“E com o decorrer do tempo, lá para os 6 ou 7 anos de idade, vão emergindo as vivências da criança, as suas relações com o meio, as pequenas e as grandes descobertas, o seu modo de pensar, de sentir, de olhar os outros e ela própria, o desespero dos pequenos dramas ou o espanto nos momentos de sonho e de volúpia. Em Dia de chuva (Álbum III, 27), vê-se as nuvens a flutuar e o arco de círculo com as cores do espectro solar. A água cai com abundância e a criança está deslumbrada mas mal se vê com o guarda-chuva aberto. Em Inverno (Álbum III, 47), o mau tempo espalha-se no papel: o céu é de um azul carregado e o relâmpago deixa lá a ressonância de um trovão. Na Hora de recreio (Álbum III, 48), as crianças deixaram num ápice as carteiras vazias, estão ainda na sala de aulas mas em movimento para a saída no alarido do costume.”

 E para finalizar:

“Todas estas representações revelam palpitações de ternura, uma alegria esplendorosa. São poucos os desenhos que escapam a esta festa, a este mundo feérico e reinventado. Mas tem aí um que não esconde o mal-estar, uma situação de angústia ou de constrangimento. Quando o descobri (Álbum II, 19) lembrei-me de Edvar Munch. O grito de um ser humano desesperado. Aquela angústia quase absoluta. Fiquei apreensivo. Momentos depois, num daqueles jogos lúdicos de perguntas e respostas, encontrei a chave do enigma. A Catarina disse-me que o dia mais triste da sua vida foi quando lhe morreu um periquito. E é essa a data e a circunstância daquela expressão estética.”

E termina assim a sua Introdução.

Infelizmente, Luís, a Catarina teve de suportar uma dor mais forte do que essa que tão bem retratou nesse desenho que se reproduz. Faço votos por que ela saiba encontrar neste texto de amor, neste texto poético de rara beleza e nas recordações que de ti nela permanecem a força para sorrir ao recordar-te, para te sorrir como se estivesses presente.

No passado dia 4 de Março foi concedida a Luís Dantas a Medalha de Mérito Cultural pela Câmara Municipal de Ponte de Lima, uma atribuição de toda a justiça a um Homem bom e generoso que tanto contribuiu para a divulgação da história da sua terra. Felizmente teve essa homenagem em vida, ele que tanto amou Ponte de Lima e que tanto do seu trabalho de investigação lhe dedicou e deixou para os vindouros.

Monte Abraão, 23 de Junho de 2011

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 24, de Outubro de 2011

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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