A Cidade-fantasma de Araújo Soares

 

A Cidade-fantasma de Araújo Soares

Nota crítica de Ricardo de Saavedra publicada no catálogo da Exposição “VIANA BONITA”, no Salão da Cultura da Praça da República, em Viana do Castelo, de 25 de Julho a 4 de Agosto de 1987

 



Ricardo de Saavedra



A pintura de Araújo Soares é feita no discurso directo, autobiográfico, com pinceladas de folclore e inspiração maiêutica de regionalismo. Quem não conhece a amplitude da sua obra pode até incorrer no pecado venial da classificação apressada. Ou seja: pode julgar que Soares é sempre assim, limitado ao rectângulo fechado da janela do seu quarto, a pintar o verde do verde-Minho onde nasceu, ou a explorar as formas do matiz caseiro que lhe fere a inspiração. Por isso que a ignorância ou a inveja nem sempre lhe reconheça o mérito de pintor que navega além das fronteiras do seu reino.

Mas a culpa é de Soares. Advém desse seu jeito de estar por dentro das coisas, até que a «coisa» se materialize em imaginação, lhe percorra o sangue e escorra em tinta da ponta dos dedos.

Quando estava em Moçambique, por exemplo, quando pintava negros cara-de-fome-punhos-erguidos, quando retratava monhés de cofiós berrantes ou resfolegantes paisagens de sóis de morte, Araújo Soares era africano, rilhava os dentes da cor no regionalismo da terra. Na Suazilândia, era guerreiro, lança afiada à porta cubista do kraal. Em Bruxelas, a sua paleta foi cinza, diluída em dardos de incompreensão e espanto. E por aí fora, na Rodésia, na África do Sul, onde o vi passar dias esquecidos na busca do folclore trepidante e do regionalismo agreste das paisagens boers.

Uterinamente regionalista, é certo, mas da região onde está, o pintor voltou a Viana. Durante os últimos doze anos deu-nos os trajes, os zés-preiras, as procissões, os pescadores, os bêbados, o povo, embora aliviado por moçoilas donairosas de amarelados olhos de amêndoa.

Agora, talvez cansado das pessoas, mais directo, totalmente autobiográfico, resolveu fazer uma crítica rigorosa e até violenta ao seu próprio regionalismo.

Em 50 quadros que são capítulos magníficos, António de Araújo Soares quase não sai do mesmo sítio, quase não precisa de andar, para nos descrever, no seu estilo de discurso directo, o que todos os dias olhamos sem ver, o que a cada instante nos fere a alma sem sangrarmos de beleza: é a sua «Viana Bonita», com as portas, os arcos, as ruas, as sacadas, as igrejas, as capelas, a ribeira, o chafariz, as estátuas.

Quando um artista descobre dois ou três recantos de uma cidade ou de uma região e os pinta ou descreve faz regionalismo. Mas quando, como Soares fez agora, inventa uma cidade, tal como Van Gogh descobriu Arles e Aquilino as Beiras, o artista supera-se, quebrando a fronteira do espaço e da área a que se limitou.

A «Viana Bonita» que Soares construiu é deslumbramento no seu todo, destruindo assim o regionalismo de cada um dos seus quadros. Cidade-fantasma, sem vulto de gente nem sombra de cão, ele embrulhou-a de amor e talento, com milhões de traços vigorosos, onde o grito rectilíneo do negro se desfaz a cada instante no sorriso airoso das tintas.

A dureza do traço, a secura dos prédios antigos, a solenidade das fachadas das igrejas, o empedrado das ruas, tudo, possui a transgressão de um laivo de sol, a riqueza constante da força pictórica, o grito barulhento do azul do céu, o vermelho-laranja de uma peça de roupa à varanda ou o verde-musgo das ruas antigas, onde carro não entra e gente que passa não se vê.

«Viana Bonita», a cidade-fantasma de Araújo Soares, irá desfazer-se aos bocados nas mãos dos visitantes que a vão disputar. Vai ser bom para ele e razão de pena para nós. Porque, quanto mais seria justo e nobre que essa colecção preciosa fosse adquirida por alguém e reunida, toda inteira, numa das salas de visita da mais linda cidade do país, como ímpar património cultural!

Mas Viana sempre foi madrasta dos seus próprios filhos. Talvez por essa razão Araújo Soares se tivesse vingado ferozmente na autocrítica ao seu regionalismo, oferecendo-nos agora o sensualismo anímico de uma cidade onde menos pessoas não existem e tudo se adivinha.

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

Sugestões