Intervenção de Miguel Ayres de Campos–Tovar na sessão de apresentação do livro “JOÃO CARDOSO DE OLIVEIRA – homem e sacerdote” (*)

 

Intervenção de Miguel Ayres de Campos–Tovar na sessão de apresentação do livro “JOÃO CARDOSO DE OLIVEIRA – homem e sacerdote” (*)



Miguel Ayres de Campos-Tovar



Sendo o Dr. António Mário um cultor tão dedicado da memória e da palavra, também eu entendi que devia deixar memória escrita daquilo que trouxe para dizer. E por isso, apelando à vossa paciência, passo a ler.

Cumprimento Sua Excelência Reverendíssima D. João Lavrador, bispo desta nossa diocese.

Cumprimento o Monsenhor José Caldas, nosso anfitrião nesta casa comum, e o Professor Fernando Hilário, Presidente da Associação de Escritores, Jornalistas e Produtores Culturais de Ponte de Lima.

Saúdo com a habitual amizade, que me honra, o Dr. António Mário Leitão, cujo trabalho nos reúne aqui esta tarde.

E a toda a distinta audiência, estendo o meu sentimento de gratidão pela presença.

É para mim uma grande satisfação, e não pequeno privilégio, estar hoje aqui para celebrar o aparecimento deste livro.

Fui acompanhando à distância, mas assiduamente e com muito apreço, o processo crítico e criativo que se veio a traduzir nesta obra. Nada do que vos possa dizer sobre ela será surpresa para aqueles que conhecem o autor e os seus trabalhos anteriores, como creio ser o caso da maioria.

O que se nos oferece nestas páginas é uma trama profundamente humana – diria que densa de humanidade – rica de dados e detalhes, onde cooperam o texto, a imagem, o documento e o testemunho directo. Mas ela é ao mesmo tempo íntegra, encadeada, e propriamente literária na sua construção. Estamos, com efeito, perante uma obra inteira, no sentido crítico do termo, produzida com a paciência própria do investigador e com a sabedoria que é prerrogativa dum artesão experiente. Esta é uma síntese infelizmente rara de vocações, e por isso me parece especialmente merecedora de sinal.

Mapeando o percurso biográfico do P.e João Cardoso de Oliveira, resgata-se a memória de factos dignos de lembrança, e nisso cumpre-se o ofício clássico do historiador. Mas mais ainda que reconstruir o perfil duma figura, pelos seus feitos e pelos seus frutos, o que se engendra nestas páginas é um retrato cooperativo e dinâmico, mediado pela memória das suas comunidades. Sendo uma biografia, o trabalho produz também história social, gesta regional e etnografia – em última instância, um testemunho cheio e singular de amor à terra alto-minhota e às suas gentes.

O biografado insinua-se-nos por meio dum calidoscópio de recordações e testemunhos: na apresentação da sua pessoa, reatam-se múltiplos fios de experiências, de recordações individuais e comuns, que o autor entrecose com especial destreza. Julgo ser este o retrato que mais convém a um pastor – afinal, um homem que fica por aquilo que dá de si, e pela semente dessa entrega no coração alheio. Rescrever uma vida vivida nestes termos é reconstituir um indivíduo pelo que deixou no outro – é refazer o tesouro pela dádiva. Nisto se cumpre outro desígnio imemorial da historiografia: o de edificar, excitando os ânimos à admiração e ao justo tributo.

Não pretendendo aqui sobrepor-me ao livro e alargar-me imperfeitamente sobre os conteúdos que ele perfeitamente trata, escolho antes partilhar convosco algumas reflexões a que fui movido pela sua leitura, que espero ajudem a balizar o significado maior deste trabalho.

Começo, a jeito de mote, com uma curiosidade. Os naturalistas gregos e romanos escreveram nos seus tratados que o elefante se pode considerar o mais humano dos animais – isto por ser, diziam, capaz da memória e da maravilha. Segundo a tradição herdada pelos clássicos, esta nobre criatura era capaz de olhar para os seus companheiros tombados na morte com reverência e saudade, e de olhar para os astros com sentimento de pasmo e pequenez. Também a nós, como a esse bicho, nos humaniza o saber olhar para trás e para o alto, buscando no passado e no eterno o sentido do que somos. Esta dupla vocação dignifica-nos porquanto nos mostra que não somos filhos espúrios do momento e da circunstância, mas elos numa história e num destino que nos entrelaça para além do ocasional. Somos dotados, por graça de Deus ou por mal de nossos pecados, duma pertença e dum horizonte.

Entristece-me dizer que somos, ou temos sido, uma terra fracamente capacitada para a memória. Não decerto por falta de matéria memorável, mas por défice dum hábito e duma cultura historiográfica. Temos sido pobres de memória, diria, por falta de quem exorte à lembrança. A função daquele que historia é uma função a seu modo profética: a de nos levantar os olhos do pobre quotidiano, à imagem do elefante lendário dos antigos, despertando-nos para a pertença a um passado e para o convívio daqueles que, partindo, enriqueceram quem somos. Ora é justamente esse desígnio que aqui nos une: o desígnio cívico e civilizador de olhar para além de nós, para o antes que nos determina e enobrece, como indivíduos e como comunidade.

Seja a história recente ou antiga, paroquial ou global, ela marca-nos e destaca-nos da pequenez do tempo privado e da íntima existência. Há muito quem nos fale de modo displicente duma micro-história, ou duma história local, como se a historiografia do que nos é próximo padecesse duma enfermidade qualitativa. Mas isto são vícios bizantinos da linguagem. Toda a história é uma exortação a sairmos de nós; toda ela nos relaciona com o testemunho, confortante ou inquietante, dos nossos maiores; toda ela opera a função social de constituir comunidade, buscando para o homem as âncoras ou raízes dum lugar no mundo. Neste sentido, toda ela é local por definição.

Chego ao terceiro e último ponto desta reflexão. Escrever história é sempre, e antes de mais, contar uma história. Qualquer história é, por natureza, a história de alguém – de dado sujeito ou colectividade. Neste sentido, ela não é passiva ou cumulativa, mas encerra um propósito e uma direcção. O que aqui encontramos é uma narração amorosamente construída a partir dos fragmentos da complexa e misteriosa integridade do objecto biográfico. Também este é um dos traços do ofício do historiador: narrar, encadear, submeter a um fim e a um todo a arbitrariedade dos factos, reuni-los ao serviço duma ideia, que é a sua.

Tendemos talvez a esquecê-lo numa era de predomínio das ciências, mas a história é um sub-género da literatura. Daí deriva a sua primeira nobreza, e a sua principal utilidade, que a irmana às fontes imemoriais da poesia e do sagrado. Um sub-género com regras próprias, é certo, e constrangida por métodos específicos, mas ainda assim literário na plenitude da sua missão construtiva e criadora. Eis aqui uma terceira função do historiador: a sua arte – e falo aqui em arte no sentido grego do termo, enquanto técnica – é a de construir a memória, e a de lhe dar um sentido e um propósito comum. Se ele não inventa a matéria com que trabalha, como também não a inventa o pedreiro ou o pintor, no trabalhá-la não é menos fazedor que o poeta ou o artista.

O trabalho do historiador, qualquer o seu horizonte ou o seu objecto, partilha e participa desta dignidade. É a mensagem que aqui venho deixar ao autor, aos mais partipicantes e à distinta audiência. Devemos saber reconhecê-lo, devemos saber agradecê-lo enquanto comunidade, e sobretudo devemos saber enquadrá-lo à luz da missão maior que ele representa: furtar-nos à tirania do imediato; aprofundar o nosso lugar no mundo; buscar a memória e a maravilha que nos humanizam. Não é pequena missão.

 

Nota
(*) Livro apresentado na Igreja Matriz de Ponte de Lima, em 6 de maio de 2023, em sessão presidida por D. João Lavrador, Bispo da Diocese de Viana do Castelo.

 

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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