Rosa Paula

Rosa Paula

A Tia Rosa Paula

 



Luís de Sousa Dantas



A Rosa Paula tinha a reputação de vender as melhores pingas e os mais saborosos petiscos nas grandes romarias minhotas. Nas vésperas do Senhor da Saúde (Sá), Nossa Senhora da Boa Morte (Correlhã), Senhor do Socorro (Labruja), Santa Justa (São Pedro de Arcos), São Bartolomeu (Ponte da Barca), Senhora da Peneda (Gavieira, Arcos de Valdevez), Santa Marta (Portuzelo) e Nossa Senhora da Agonia (Viana do Castelo), os dias eram longos e desdobravam-se em agradáveis afazeres: a matança do porco, a preparação das carnes, dos enchidos, do frango estufado, das pataniscas, dos bolinhos de bacalhau, das sardinhas de escabeche.

Pela madrugada, à luz do petromax, a sua gente estava a caminho com as iguarias, fogões, potes, tachos de ferro, caçarolas, travessas, pratos, talheres, malgas, canecas, mesas, armações e lonas da quitanda, pipas de vinte almudes de vinho tinto. Ia de barco, partindo do Cais de Nossa Senhora da Guia, ou em carros de bois ataviados com ramagens verdes.

No recinto do arraial, de dia e de noite, no meio do burburinho habitual, não tinha mãos a medir. Por ali aparecia toda a espécie de clientela para os comes-e-bebes: lavradores, jornaleiros, mulheres abastadas das aldeias (as estimadoras), criadas de servir, pregoeiros, peixeiras, vendedores ambulantes, homens dos ofícios, bufarinheiros, tocadores de concertina, poetas de meia tigela, cantadores, abades das redondezas, comerciantes, empresários, novos ricos das minas de volfrâmio, boémios do café, da assembleia, do banquete, do bailarico, do bandolim, do liceu ou da universidade, doutores e fidalgos amantes da gastronomia.

A Rosa Paula, que já enxergava ao longe a sua freguesia, tinha sempre banca reservada ao ar livre para o escol de vila ou cidade. Sabia ao que vinha essa tropa fandanga – tomar parte na tagarelice e encher a pança: duas, três travessas de Arroz de Sarrabulho, e outras tantas de rojões, tripa enfarinhada, belouras, fígado, batatinhas louras, castanhas assadas, rodelas de limão e raminhos de salsa.

Sentava-se com eles por pouco tempo, não só a escutar falas blandiciosas, fanfarronices, chalaças e despautérios, mas intrometendo-se com resposta pronta e a tempo, sem arroubos de mau humor, tal era a troca de olhares alegres e a harmonia das suas afeições. Eram assim aquelas turmas pândegas, no arremedo de pequenas peguilhas, a puxarem-lhe pela língua, à espera de um trocadilho, de um rifão a propósito, de um dito afiado. E se um desses peralvilhos espertos tinha olhos azuis, a pertinácia da virtude e da gabarolice, não deixava de manifestara sua falta de ingenuidade e o sentido da ironia: nunca vi nenhum santo de olho branco. Era uma expressão que costumava repetir e que acordava sempre na alta-roda uma breve gargalhada. De pilhéria em pilhéria, numa segunda rodada de verdasco, vazavam-se as seis malgas de quartilho. «Esse briol», dizia ela, «é de Ranhados, de Refoios.» E um cavalheiro forte, sedutor, bigode farfalhudo, parava de beber, punha-se a cismar, e celebrava em voz alta, com pronúncia brasileira erudita, a bela frase de um filósofo espanhol: este «vinho dá alegria aos campos, exalta os corações, faz brilhar as pupilas e ensina os pés a dançar.» A dona da tenda gostava de continuar ali, não era tempo perdido, mas o velho costume de observar as regras da boa educação lembrava-lhe a hora de pôr fim à conversa e deixar em sossego os actores do repasto. Além disso, tinha mais o que fazer.

Em Ponte, com as Feiras Novas, encerrava o ciclo das festas de verão. Feitas as contas de somar e de subtrair, não saía rica nem pobre do negócio. Naquele mundo, tal como era, o ganho e a lazeira andam de feira em feira. Mas para a Tia Rosa Paula, com o seu feitio naturalmente bom, a vida tingia-se de prazeres mais altos, de emoções ardentes e de ideias inabaláveis: Mais valem Amigos na Praça, que dinheiro na arca.

Do Outono ao Inverno, tirando o domingo e as segundas do mercado quinzenal, os dias corriam desbotados e indiferentes. Na sua venda, ali na Rua Inácio Perestrelo, recostada num cadeirão, passava horas a fazer renda. Num sábado, quando menos esperava, deparou portas adentro com um senhor de fato de linho branco, camisa de seda e chapéu panamá: como passa a Senhora? Venho encomendar-lhe para este domingo um Sarrabulho à tripa forra. Somos meia dúzia. Ah, ia esquecendo o vinho: tinto de Ranhados, de Refoios!

In: Sarrabulho de Ponte de Lima – A Gastronomia da Tradição, 2011

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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