Rúben Bandão

 
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Rúben Bandão




José Cândido de Oliveira Martins



1. Autor quase desconhecido

Infelizmente, não tive oportunidade de conhecer em vida Rúben Maria Moreira Brandão (Brandara, Ponte de Lima, 1947–2001), falecido há uma década. Algumas informações sucintas sobre o seu percurso biográfico, bem como a reprodução dos seus textos (editados ou inéditos), chegaram-me por mão amiga e diligente, nas últimas semanas. Esta é também uma forma prática e generosa de limianismo, criando importantes laços de afectividade, essenciais a uma concepção de Cultura mais humana e fraterna.

Esta circunstância fortuita teve desde logo duas vantagens imediatas e correlacionadas: não me tendo relacionado pessoalmente com Rúben Brandão, li agora pela primeira vez os seus textos com uma assinalável neutralidade e distanciamento crítico; o que não significa ausência de emoção, sobretudo quando a abordagem é desenvolvida numa perspectiva estética, pois a leitura literária nunca é desapaixonada. Porém, o que se segue é apenas um apontamento muito ligeiro e impressionista.

Ora, da variedade dos textos entretanto lidos, podemos constatar a presença de alguns temas recorrentes: a reiterada confissão de amor à terra limiana; o sentimento amoroso e intimista; a experiência da guerra colonial; a poesia de humor e sarcasmo; a expressão dos valores (solidariedade, amizade, amor filial, justiça, etc.), de inspiração cristã; o lugar da educação e do ensino; a preocupação com a natureza e a ecologia, entre outros tópicos mais frequentes na escrita deste cidadão atento, sensível e empenhado.

Em vida, Rúben Brandão publicou muitos dos seus textos em diversas publicações periódicas, como Cardeal Saraiva, O Povo do Lima, Aurora do Lima, Notícias de Viana, Jornal de Vila do Conde, A Voz do Ave, A Voz de Lamego, A Voz de Trás-os-Montes, Jornal de Notícias, desde o final dos anos de 1960. Porém, muitos mais textos deixou inéditos e devidamente organizados. Natural conhecedor dos autores limianos, como António Feijó(1) e tantos outros – a este respeito, é elucidativo o catálogo da sua biblioteca particular –, Rúben Brandão demonstra ser um leitor bastante enciclopédico, cujos interesses vão da literatura à filosofia e à história. Revela-se sobretudo um homem de olhar atento e delicado, positivo e solidário.

Muitas vezes, sob a aparência de versos esforçadamente bem esculpidos e de uma ligeireza irónica e lúdica, esconde-se quer a expressão dolorosa e o lamento tocante, quer a profundidade de um pensamento existencial e filosófico. Estas características encontram-se facilmente nos sonetos, nas abundantes quadras ou nos inéditos pensamentos que nos deixou. Leiam-se, entre tantos outros exemplos, a série de quadras “Glosando motes”, lembrando o humor certeiro de António Aleixo(2); a provocante censura dirigida a certos correspondentes de jornais e à sua “redacção precária”, em nome de preocupações sociais(3); ou ainda o espírito crítico que perpassa os “Versos Adversos” e permite reafirmar certas verdades(4).

 

2. Celebração da terra limiana

Como seria de esperar, de entre as dominantes temáticas dos textos de Rúben Brandão, algumas destacam-se de modo mais evidente: a primeira é a celebração da terra limiana, bem visível em tantos dos seus textos. Deste modo, a sua escrita insere-se numa rica tradição multissecular (dos poetas medievais aos autores contemporâneos), centrada no panegírico das belezas e misteriosos sortilégios da paisagem limiana – paisagem natural, arquitectónica, humana, nas suas tradições, feiras, romarias, à equipa de futebol d’Os Limianos, etc.

Ilustremos brevemente. Em “Serra d’Arga” (5), através de variável estruturação estrófica, métrica e rimática, louva-se enfaticamente a encantatória beleza da paisagem atravessada pelo caro Lima. Numa inédita quadra avulsa acentuará a ideia de memória afectiva da admirada paisagem: “Do alto da Serra d’Arga / olhei o vale do Lima; / minha memória me guarda / o que filtrou a retina.”

Idêntico propósito anima o soneto “Princesas do Lima”, glorificando a paisagem limiana vista sobretudo do Monte da Madalena, onde parecem ouvir-se ecos intertextuais das Limianas de António Ferreira:

 

 

PRINCESAS DO LIMA

 

Quando ao sol-pôr, no colo do teu Lima,

fechas os olhos para adormecer,

fico tão mudo que nem sei sequer

compor uns versos e soprar-lhes rima!

 

Um rio azul em curvas amorosas!

A Ponte! A “Avenida velha”! O Passeio!

E o casario, qual rosto no meio

de duas tranças verdes e frondosas!

 

Com a Madalena (donde se desfruta

um panorama que já fez pasmar

o próprio autor, vê lá!, o próprio Deus)

 

ó minha terra, sem exagerar,

no mundo inteiro – crê – ninguém disputa

a não ser Viana os predicados teus! (6)

 

O forçado exílio na guerra colonial em Bissau também constitui uma forte motivação para a saudade da terra natal, numa sucessão de ternas evocações, como ocorre no poema “Bissau, 3 – Abril – 71”: “Ponte de Lima, querida terra / Meu berço amado, ó meu torrão,/ Nunca te esqueço mesmo na guerra / Lembro-te ainda com mais emoção”(7).

Poucos dias antes de falecer, em Setembro de 2001, escrevia Rúben Brandão um texto sentido, depois publicado no Jornal de Notícias, texto com breve ressonância de um conhecido poema de António Feijó ao nível do incipit que lhe serve de mote:

 

Nasci à beira de um certo rio

(ai, a saudade que me atormenta!)

contra este facto, contra este brio

que outro rio contra-argumenta?

 

Junto de um rio é que eu cresci,

nas suas margens bebi-lhe a infância;

possa meu corpo estar à distancia,

nunca minha alma saiu daqui.

 

Nascer à beira do rio Lima,

ter suas margens por longo sonho,

é tão real que é pobre a rima,

o verso, a quadra que lhe componho!

 

Nascer à beira do rio Lima,

Só esta sorte faz-nos poetas:

É-se poeta mesmo sem rima

Emparelhada pelas “selectas”.

 

E ser poeta é ver um rio

com estes olhos que Deus nos deu:

águas que cantam, ao desafio,

quadras de amor à cor do céu!

 

Nascer à beira do rio Lima,

dá-me vontade de perguntar

à amiga Morte se tem, lá em cima,

um rio assim para eu brincar.

 

Esta tonalidade de louvor às belezas da terra limiana não impede algumas manifestações de espírito crítico, censurando certas hipocrisias e comportamentos mesquinhos, ora com graça contagiante, ora com sarcasmo corrosivo. Em todo o caso, predomina uma escrita marcada pela ternura e enorme amor à vida; uma pena que medita no valor e significado da existência humana como uma dádiva suprema.

No entanto, o referido carinho com que fala da terra limiana é apenas uma variante de uma mais alargada poética amorosa: “Minha terra, minha gente, / onde me sinto tão bem / minha terra é bem diferente / de quantas o mundo tem”, como anotou numa página de jornal dedicada a Ponte de Lima.

 

3. Conjugação do verbo amar

Com efeito, em vários momentos, deparamo-nos com uma escrita atenta ao quotidiano, no que ele tem de elevado e de humanizante, mas também de censurável e de risível. Presenciamos uma visão humanista do homem e da vida, que genericamente atravessa os textos deste autor. Transparece da sua pena uma personalidade atenta, de alguém “doutorado em Amor e Educação”, para nos servirmos do elogio feito a um amigo.

Afinal de contas, mais do que o percurso académico ou os respectivos títulos, valorizou sempre a universidade da vida. Daí também a veia satírica, como nesta quadra inédita, sob a forma de invectiva jocosa: “Há gente mais educada / entre o povo analfabeto / que certa malta formada / com um ar muito selecto”. Mesmo na sua querida profissão docente, não deixa de realçar enfaticamente as recebidas “lições de amor”.

Também no gracioso poema “Epitáfio” – onde parece ecoar um conhecido verso do modernista Mário de Sá-Carneiro –, Rúben Brandão desmistifica ironicamente a tragédia da morte pessoal, superada pelo poder do amor: “Quando eu morrer / Não quero ouvir / Uma voz chorosa / Ponham-me ao peito / Vermelha rosa / E vou-me a rir / E vou-me a rir! // Quando eu morrer / Não quero, em suma, / Coisa nenhuma / A não ser isto / na sepultura:/ ‘Morreu de amor/ Não tinha cura!’ (8) “. Omnia vincit amor – O amor tudo vence (Virgílio).

Nos versos deste autor limiano, evocando a impressiva simplicidade de um Sebastião da Gama ou de João de Deus, conjuga-se de muitas maneiras o verbo amar. Uma das sentidas composições celebra ternamente o amor maternal, articulando-o com a potencial qualidade dos seus escritos – se alguma coisa valem, devo-o a essa “musa” carinhosa, fonte da vida e de tudo o que é relevante na vida, como se lê neste soneto:

 

MUSA

A minha mãe

 

Se não lerdes na prosa ou nos meus versos

uma pitada só de amor que seja,

se notardes que em mim não flameja

a chama do Ideal, esses dispersos

 

escritos meus que tenho publicado

juntai-os e fazei uma fogueira,

e aquecei-vos, já que à minha beira

não sentis calor forte e prolongado.

 

Mas se, pelo contrário, alguém notar

que neles se conjuga o verbo amar,

não me dê louvores, não, que não mereço;

 

dê antes parabéns à minha mãe,

que devo a ela – a essa musa – o bem

de transmitir amor em verso e prosa. (9)

 

Num pensamento avulso, anotará o ímpar poder de compreensão maternal: “Podem não saber mais, mas são sempre as mães que nos entendem melhor”. A terna confissão de amor superlativo à figura da mãe repete-se na escrita de Rúben Brandão, como neste outro soneto, invocando para isso alguns dos maiores líricos amorosos das suas afinidades electivas:

 

MÃE

 

Não faço versos a quem me ama

Não sei fazê-los, não sei, não sei...

Ai quem me dera ter essa fama

De outros sonetos que decorei.

 

Cantar em verso a mãe querida

Cantar em verso a noiva amada,

Gonçalves Crespo, pena polida,

Camões, Bocage, Tomás Gonzaga!

 

Cesse já tudo o que a musa canta!

Eu me arrependo desta ousadia,

Valor mais alto não se levanta.

 

Pudesse eu mesmo ultrapassá-los

Nunca os encantos da sua mãe

Podia alguém saber cantá-los! (10)

 

Para os íntimos e amigos, e para todos nós, Rúben Brandão faleceu demasiado jovem, aos 54 anos de idade. Parafraseando um conhecido pensamento de Menandro e de Plauto, os antigos romanos diziam: Quem dii diligunt, adolescens moritur – “Morre jovem aquele que os deuses amam”. Contudo, há duas realidades que não morrem nunca: por um lado, a memória afectiva que fica de quem partiu, sobretudo no sentimento dos que o amaram e conheceram mais proximamente, memória materializada nas lembranças de uma existência partilhada; e por outro também não morrem os textos que nos legou, sob a forma de criação intelectual e estética, numa saudável postura de intervenção cívica.

Infelizmente, Rúben Brandão nunca publicou em vida um livro com os seus versos e outros textos avulsos. Ora, uma forma de a terra limiana ser grata com este seu conterrâneo passa pela aconselhável recolha e criteriosa publicação de todos os textos que nos legou, desde os já dispersamente publicados, até ao considerável número dos inéditos(11). Essa seria uma forma de Ponte de Lima amorosamente retribuir a sensibilidade e a dedicação de Rúben Brandão. Afinal, “amor com amor se paga”, em forma de homenagem merecida. Só assim preservaremos a memória e não cometeremos a injustiça de esquecer quem não merece ser esquecido. (12)

 

 

Notas:

 (1)  “Ao correr da pena”, Jornal Cardeal Saraiva, 23.I.1970.

(2)  Jornal Cardeal Saraiva, 2.VIII.1968.

(3)  Jornal Cardeal Saraiva, 18.VII.1969.

(4)  Jornal Cardeal Saraiva, 17.III.1989.

(5)  Jornal Cardeal Saraiva, 12.IV.1968.

(6)  Jornal Cardeal Saraiva, 6.XI.1968.

(7)  Jornal Cardeal Saraiva, 16.IV.1971.

(8)  Jornal Cardeal Saraiva, 10.VII.1970.

(9)  Jornal Cardeal Saraiva, 24.V.1968.

(10)  Jornal Cardeal Saraiva, 21.V. 1971.

(11)  Isso mesmo lembrava José Pereira Fernandes em número comemorativo do Jornal Cardeal Saraiva, 19.II.2010, p. 69, referindo-se a vários "colaboradores injustamente esquecidos, como é o caso de Rúben Brandão, cuja obra poética bem poderia ser recolhida precisamente a partir das páginas deste semanário".

 

Publicado na LIMIANA - Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 25, de Dezembro de 2011

 

(12) N. D.

Em 2017 viria a ser publicado o primeiro livro, com o título Rúben Brandão – Quadras e Outras Poesias, editado pelo Município de Ponte de Lima, que reúne parte da obra poética de Rúben Brandão.

A organização do livro (selecção de poemas, prefácio e notas) esteve a cargo do poeta limiano Cláudio Lima, que considera esta recolha antológica como contributo para que o nome de Rúben Brandão não caia num definitivo e injusto esquecimento.

Na primeira parte do livro, é apresentada uma selecção das largas centenas, se não milhares de quadras (ao gosto popular) que este poeta limiano nos deixou, organizada por conjuntos temáticos, atendendo, prioritariamente, à índole e substância aforística que as enriquece, metodologia que levou Cláudio Lima a estabelecer onze universos, a saber: Religião e Moral; Filosofia; Política e Sociedade; Amor; Crianças; Natureza; Morte/Vida; Poesia/Poeta; Humor; Ponte de Lima; e S. João.

Na segunda parte, são apresentadas outras diferentes poesias escritas em vários formatos e explorando diversas temáticas, com recurso frequente ao soneto e a vários outros registos métricos, incluindo a redondilha maior, pela qual Rúben Brandão tinha especial predilecção.

A cerimónia de apresentação do livro, presidida pelo Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima, decorreu no Auditório Municipal, em 16 de Janeiro de 2018, dia em que Rúben Brandão completaria 71 anos de idade.

A apresentação da obra, que contou com a presença de elevado número de amigos do autor limiano, esteve a cargo de Cláudio Lima e de Rui Quintela, seu grande amigo desde os tempos de juventude.

Na sua intervenção, o Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima enalteceu o trabalho de todos os que colaboraram directa ou indirectamente na realização desta obra, considerando que, com a sua publicação, foi prestada uma homenagem à cultura limiana e, em especial, a este autor.

 

 

Rúben Brandão – Quadras e Outras Poesias

Primeiro livro que reúne parte da obra poética de Rúben Brandão, editado pelo Município de Ponte de Lima em 2017, com selecção, prefácio e notas de Cláudio Lima,


Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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