Entrevista de Ricardo de Saavedra a Araújo Soares

 

Entrevista de Ricardo de Saavedra a Araújo Soares

Publicada na rubrica “o meu pé-de-meia” do suplemento ECONOMIA do DN, de 27 de Agosto de 1990

 

 

 

Nunca passei um cheque na minha vida – confessa o pintor Araújo Soares

Quem é quem

 Na última Festa do Traje da Romaria da Agonia chamaram Araújo Soares ao palco. Ele havia pintado o cartaz alusivo, que merecera primeira página dos principais jornais da região. Uma espontânea ovação levantou os espectadores e Araújo Soares comoveu-se às lágrimas.

Perguntámos-lhe mais tarde quanto ganhara com o cartaz. Encolheu os ombros e respondeu lacónico: «Ainda não sei. Mas ganhei a amizade de muita gente. Não há dinheiro que pague isso.»

Nasceu há 62 anos na Princesa do Lima. Começou como pintor numa fábrica de louça, depois foi para Moçambique como funcionário público. No desempenho destas funções ganhou medalhas de ouro a decorar pavilhões em feiras internacionais.

A certa altura, mais de 25 anos são passados, dedicou-se à pintura. Já participou em 40 exposições colectivas e 20 individuais, que o levaram do Minho à Galiza, da França à Bélgica, da África do Sul aos Estados Unidos.

No ano passado expôs em S. Diego, na Califórnia, como artista português convidado para o Festival Cabrillo.

Ganhou certamente muito dinheiro, mas ainda não lhe chegou para pé-de-meia que se veja. Porque, quanto ganha quanto gasta. E é por isso que o escolhemos para esta polémica secção d’o meu pé-de-meia.

 

António Soares não poupa

 Nunca passou um cheque na vida dele. Cartão Multibanco só o usa para levantar a semanada. Gasta quanto ganha, pagando sempre a pronto. Mesmo assim é contra a sociedade de consumo, que promove do inútil propaganda desenfreada.

Chama-se António de Araújo Soares, é um dos artistas mais cotados do Alto-Minho.

Falou para o DN do seu pé-de-meia, depois das últimas Festas da Agonia, em Viana do Castelo, para as quais pintara o cartaz alusivo à grande festa do norte.

Tudo o que ganha, gasta. E compra sempre a pronto, razão por que não possui as coisas de que mais gosta. Mas gosta muito, muito, de gostar. E nunca passou um cheque na vida, nem pediu dinheiro emprestado, nem jogou na Bolsa. Acha que o fisco é cego para as coisas da Arte, o que torna os artistas em aldrabões ou preguiçosos.

 

 

DN – Como ganhou o primeiro dinheiro e que destino lhe deu?

Araújo Soares – Creio que foi na Fábrica da Louça da Meadela, teria uns 17 anos. Andaram na Escola Industrial à procura de desenhadores e escolheram-me. Sei que nessa escolha interferiu o escritor José Rosa de Araújo, mas não recordo quanto pagavam exactamente. O meu pai já então era viúvo e estava a criar seis filhos. Entregava-lhe portanto o salário e ele dava-me 20 escudos por semana, que eu distribuía entre a partida de bilhar, o galinheiro do cinema e o macito de Definitivos.

 

DN – E em arte, qual o primeiro dinheiro que ganhou?

AS - Creio que foram cem escudos. Quando a Rainha Isabel de Inglaterra visitou o Norte, o Município de Viana do Castelo decidiu oferecer-lhe uma boneca vestida à vianense acompanhada de um pergaminho. Confiaram-me a execução da iluminura e do respectivo texto, em gótico.

 

DN – Começou a sua carreira como ceramista e algumas das suas peças únicas são hoje extremamente valiosas. Ganhou muito como ceramista?

AS - Ganhei muito em satisfação espiritual. No período em que trabalhei com António Pedro e António Joaquim e que com eles, com minha irmã Fernanda e outros expus em Portugal e no estrangeiro, a experiência adquirida foi extremamente rica. Contudo, as minhas peças eram vendidas a três ou quatro contos. Hoje, segundo especialistas, O preço de certas peças únicas ultrapassa os 500 contos.

 

DN -- Porque não continuou como ceramista?

AS - É uma história triste, que prefiro não esmiuçar. O desaparecimento inesperado de minha irmã Fernanda levou-me a procurar outros horizontes.

 

DN – Um artista plástico pode hoje viver da sua arte em Portugal?

AS - Sem dúvida, e pode viver bem. Mas tem de trabalhar muito e todos os dias, não pode limitar-se à execução de um ou dois quadros. A inspiração é importante, mas a transpiração é o melhor diluente dos pincéis.

 

DN – E o fisco, torna-se pesado para os artistas?

AS - O fisco, em Portugal, é cego, não aprecia a Arte. Isso faz com que muitos artistas se debatam entre ser aldrabões ou preguiçosos. Se ganham muito, preferem aldrabar as contas a ser espoliados; ou então desleixam-se, dão-se à preguiça. A Cultura, que noutros países é indústria rentável, entre nós sobrevive numa espécie de clandestinidade ou submundo. As viagens ao estrangeiro, para se fazer exposições, saem caríssimas. E o fisco não olha ao que se gasta. O total de deduções previsto nas declarações não chega para uma semanita nos Estados Unidos ou quatro dias no Japão. Como pode dessa forma um artista divulgar a Cultura do seu país no estrangeiro? É por isso que muitos preferem emigrar...

 

DN – Pelos vistos, a arte não lhe proporcionou fortuna. Tem-lhe, ao menos,
resolvido dificuldades financeiras momentâneas?

AS - Não. Sou funcionário público, nunca passei propriamente dificuldades. Pinto por vocação, por necessidade espiritual, por amor. A arte ajudou talvez a proporcionar à minha filha, sem solavancos, a formação universitária que possui. Noutra perspectiva, e isso sim, deu-me muitas oportunidades de viajar, de conhecer mundos…

 

DN – Acha que em Portugal os artistas são bem pagos?

AS - Já começam a ser considerados; há muitos a receber o justo valor do seu trabalho.

 

DN – E você é bem pago?

AS - Não me queixo.

 

DN – Vende muito?

AS - Recebo várias encomendas de entidades oficiais e convites para muitas exposições. Tais circunstâncias não me permitem larga produção para venda directa...

 

DN – Mas possui o seu pé-de-meia?

AS - Não. Tudo o que ganho gasto. Gosto de gozar a vida, gasto quando posso em viagens de estudo, compro livros de arte e decoração, gosto de vestir à (minha) moda. Se enxergo numa montra qualquer coisa que me agrada, compro. Eu gosto de gostar. Mas concordo que devem ser criados travões à sociedade de consumo, porque a maioria das pessoas despende dinheiro à toa, levada pela propaganda desenfreada do inútil. Prefiro a qualidade e detesto a propaganda.

 

DN – Como compra?

AS - A pronto, sempre a pronto. E é por isso que nada tenho. Às coisas que mais gostaria de possuir, não possuo. Não tenho casa própria, nem vídeo, nem carro, nem sequer carta de condução.

 

DN – Usa cheques para pagar ou cartão de crédito, ou…

AS - Nunca passei um cheque na minha vida. Possuo cartão de crédito, mas apenas o utilizo para levantar dinheiro nas caixas do Multibanco. Aos fins-de-semana vou à máquina, levanto o dinheiro que preciso e governo-o até à semana seguinte. Uso o mesmo sistema de quando era jovem: só que agora é o Multibanco e não o meu pai quem me dá a semanada.

 

DN – Já pediu dinheiro emprestado, já emprestou?

AS - Nunca pedi um tostão. Já emprestei algum, sempre pouco, porque também não tenho muito. Mas nunca perdi um amigo por não ter pago. Confesso que gosto mais de ajudar do que de emprestar.

 

DN – Participa em jogos de azar?

AS - Jogo uma vez por ano nas slot-machines de um casino qualquer. Há cerca de um ano fui a Las Vegas. E compro todos os natais a lotaria; todas as semanas preencho 12 números desdobráveis no totoloto; De quando em quando aposto no totobola, onde já me saíram 47 contos. Nessa altura, peguei na família e fomos para Lisboa passar o Natal.

 

DN – Se lhe saíssem cem mil contos, o que faria?

AS - Adquiria uma casa. Depois ia por aí fora à procura de alguma das minhas cerâmicas, de certas pinturas, de várias peças e quadros de minha irmã Fernanda. Iria reaver obras de que tenho saudades. O resto punha no banco.

 

DN – A velhice assusta-o?

AS - Vou ser pensionista do Estado. Completarei então a reforma com este PPR que são as minhas mãos e os meus pincéis, assim Deus me vá dando saúde.

 

DN – Ultimamente, a base temática da sua pintura é o Minho, sobretudo Viana, na paisagem e nas gentes. Fá-lo por regionalismo intrínseco ou porque é uma alta fonte de receita garantida?

AS - Adoro o Minho, adoro Viana. Tal como, quando vivi em Moçambique, adorei aquele povo e a paisagem. Entre os meus quadros mais cotados ainda sobressaem hoje os dessa época. O que mais gosto de pintar são os tipo do povo, triste e feliz, no lazer ou no trabalho.

Ferreira de Castro classificou-me um dia como mais humanista que Portinari. Jorge Amado, mais tarde, partilharia dessa opinião. Sinto-me bem em ser humanista, desejava que cada minhoto tivesse um quadro meu, mesmo que fosse de borla. A minha maior alegria é entrar na casa de alguém e encontrar lá, numa parede, um pouco de mim. Defendo a amizade, prefiro-a ao dinheiro.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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