“Que é que eu tenho, Maria Arnalda? e outros contos pícaros”, de Couto Viana – Apresentação por Ricardo de Saavedra

 

“Que é que eu tenho, Maria Arnalda? e outros contos pícaros”, de Couto Viana – Apresentação por Ricardo de Saavedra

Apresentação promovida em Lisboa pela Casa do Concelho de Ponte de Lima (CCPL), pela revista Limiana e pela Editora Opera Omnia, em 12 de Setembro de 2009, no Auditório do CITEFORMA – Centro de Formação Profissional dos Trabalhadores de Escritório, Comércio, Serviços e Novas Tecnologias, com a participação do Grupo de Cavaquinhos da CCPL.

 



Ricardo de Saavedra



Da interrogação à Cidadezinha de António Manuel Couto Viana

Apresentar um livro, pequeno ele seja, não é pêra doce. Mais amarga se torna quando o seu autor deu à luz quase duas centenas de títulos, que beliscam ou trincam a maioria dos géneros literários, e que há muito lhe cinzelaram o nome, a letras de ouro, na história da literatura pátria. É por isso que, para apresentar um livro de António Manuel Couto Viana, o maior dos nossos poetas vivos, se requerem talentos que não possuo e coragem que se estique, a rondar a desfaçatez.

Para apresentar um livro é preciso, antes de mais, conhecê-lo por dentro e por fora, adivinhá-lo, ter resposta na ponta da língua, para retrucar de pronto ao ouvinte e futuro leitor. No específico caso de Que é que eu tenho, Maria Arnalda? tudo se complica. Logo na capa aparece um emproado ponto de interrogação. No jornalismo, terrenos que calcorreei durante mais de quatro décadas, não se recomendavam e até se proibiam títulos interrogativos. Na literatura também não abundam, suponho que pela mesma razão. Porque os leitores querem respostas e explicações, pagam mal a quem os questiona ou lhes põe dúvidas. Neste caso concreto, quem sabe responder ao que é que ele tem, sobretudo se a Maria Arnalda não está presente e nem sequer é das nossas relações? Como pode o apresentador responder à pergunta da douta plateia sem dar cabo, logo de entrada, da azulínea capa e da misteriosa interrogação do título?

Da vasta obra que conheço de António Manuel Couto Viana não recordo qualquer outro título interrogativo. Foi preciso passar a barreira dos 80 para que ele, sempre tão correcto e tão cioso do que se consideram os bons princípios, desse uma de jovem rebelde, que se está nas tintas, e escaqueirasse as regras. Não só no que respeita à interrogação mas acima de tudo no radicalismo ousado (ia a dizer desbragado) de múltiplas cenas que ele chama de pícaras, para disfarçar o despudor das incursões.

A ficção picaresca é velha de 450 anos. Nascida na vizinha Espanha, antes de Cervantes e do seu D. Quixote, por lá pegou de estaca e nunca deixou de se expandir. Em Portugal, porém, murchou à nascença. Decerto devido aos maus ventos da dinastia filipina que nos estrangulava a gorja.

Já agora, a talhe de foice, deixem-me resumir a receita que tão apetecível torna a clássica novela picaresca.

O narrador deve ser servido, de preferência, na primeira pessoa, tipo autobiografia, ou como se fosse carta para alguém próximo, de forma simples. Recomenda-se que o personagem seja de baixa extracção social, vagabundo, burlão, farsante e um pouco ridículo, servidor de vários amos e ofícios. O pícaro deve manter-se marginalizado, mostrar certo orgulho pela sua origem familiar desonrosa, condenar-se a levar uma vida mesquinha. O seu objectivo é subsistir. Dos erros e desventuras que relata até podem extrapolar conceitos moralistas, que jamais segue.

É o anti-herói, comprometido em alimentar a sátira social e a ironia. Aproveita as fraquezas dos superiores com sarcasmo e mantém-se impassível perante as desventuras próprias e alheias. É autónomo, individualista, ardiloso, despreza as leis do Estado e apenas tem em vista os seus somíticos interesses.

Veste as mais variadas roupagens: falso mendigo, rezador cego com vista de lince, peregrino viciado na mentira e citações piedosas, nobre com título de vão de escada, fiador de ladrões e prostitutas, clérigo dissoluto e político corrupto, militar sem honra e mulher sem pejo.

O pícaro é uma mistura de estóico e de cínico, segundo os parâmetros da filosofia clássica, porque é imperturbável, desapaixonado, resignado ao seu destino, ao mesmo tempo que afronta quaisquer valores sociais e culturais, por duvidar que eles sirvam para alguma coisa. Ora, esta discrepância permite, em termos literários, um infindável leque de variações.

Quando, em Fevereiro de 2004, António Manuel Couto Viana publicou Meias de seda vermelha e sapatos de verniz com fivelas de prata e outros contos (Prefácio, Lisboa), muitos consideraram que se tratava de um devaneio romanesco do Poeta acerca do que passará a chamar de Cidadezinha. Contudo, a essas primeiras oito estórias seguir-se-iam, quatro anos mais tarde, as nove de Os Despautérios do Padre Libório e Outros Contos Pícaros (Opera Omnia, Guimarães, 2008), e as críticas desataram então a rasgar elogios, levando a edição a esgotar-se em escassos meses.

A palavra «pícaro» do segundo título foi o detonador escondido na obra ficcionista que o Poeta construiu nos últimos cinco anos e que neste volume maneiro que hoje apresentamos mantém a receita, alargando os braços da cidadezinha, com toque ora aveludado e matreiro, logo picante e burlesco.

Por insuspeito, permitam que leia um belo excerto crítico do romancista Urbano Tavares Rodrigues sobre este livro:

«A maioria dos contos (...) mostra-nos as manias e as «partidas» de senhoras da decorosa burguesia e as figuras dos tolos, maníacos, doidos da aldeia, vítimas da sua ingenuidade em cenas por vezes delirantes de comicidade como a dos cornos do pretendente a maçon ou a do maluquinho dos comboios. Não se esquece mais a caganeira do chefe de Estado e sua digníssima esposa depois de ingerirem no banquete oficial que a cidadezinha lhes oferece os gostosos «badamecos» (...).

O all right de satisfação erótica de Hermengarda de Fermentelos e do Nuninho das bonecas, as andanças dos velhos Ford Anglia, trocados, esquecidos, roubados, pelas ruas de Lisboa e pelas esquadras de polícia, as peripécias do enterro do «Côdeas» e as manigâncias do Toninho, tudo neste livro ressume graça e poder inventivo, mas a mais assombrosa história, que atinge o auge do inesperado burlesco, é de facto essa obra-prima do conto inimaginável Que é que eu tenho, Maria Arnalda?

A coroa de glória do António Manuel Couto Viana contista. Um texto de antologia, que fica na literatura portuguesa.»

Depois de Urbano falar deste jeito do Maria Arnalda, podia ficar- -me por aqui e o papel de apresentador estaria cumprido. Mas a questão mantém-se: o que significa esta interrogação do título na Obra de António Manuel Couto Viana?

No conjunto dos três livros, ficam publicados 27 contos e existe mais meia dúzia ainda inédita. Quando o Autor se decidir a olhá-los no seu conjunto e lhes introduzir ligeiras alterações e outro alinhamento, de jeito a que as peças encaixem melhor umas nas outras, e quando do que resultar for feita uma edição revista criticamente, daí advirá um dos mais explícitos e incontornáveis exemplares da novelística pícara da Literatura Portuguesa.

Quais as características que enformarão esse hipotético livro?

Antes de mais, todas as narrativas atrás mencionadas transmitem o colorido de uma época e a temperatura de um lugar-comum. O lugar é A Cidadezinha ou povoações vizinhas e a época respira na alargada transição da Monarquia para a República. O estilo liberta-se dos carreiros da picaresca espanhola, mas aguenta-se no entrecho e nos propósitos.

A Cidadezinha é no Minho, praieira, fidalga e burguesa, fala com abundância de bês, tem mar e rio, governo civil, bombeiros e a congregação da caridade, palácios, casas brasonadas, quintas e ruas estreitas, pescadores e romarias.

A Cidadezinha é a mãe-d’água de onde brota a seiva de todos os contos. Da sua forma quadrada, símbolo da estabilidade – quatro lados que são o mar, a montanha, o rio e o campo – flui o movimento que dá cor às descrições. Tal como na mandala quaternária hindu, no centro da cidadezinha está o brâmane, a cabeça, o personagem central. É ele que conhece as histórias, que relembra os factos, constrói as anedotas. Que escolhe o relator, às vezes até participa no enredo, e lhe dá voz em nome dos que sofrem ou dos que mofam da realidade. Mordaz e cínico, malicioso e sagaz, ele espalha em círculos o que sabe e depois escapa-se, a maioria das ocasiões, astucioso, com reprimida gargalhada.

Couto Viana lembra, na dedicatória d’Os Despautérios, a sua tia Rosalina que, «não saindo senão para a missa e para o teatro, conhecia toda a História e todas as histórias pícaras e dramáticas da sua cidadezinha.» De Viana do Castelo, portanto, da sua Viana natal nos falam os contos pícaros. E o relator de alguns desses contos – seja o engenheiro da Câmara, o estudante do Camões, o neto da Viscondessa de Rebordões e da D. Sofiinha ou o filho do Comandante, o sobrinho da tia Petronilha ou do tio Pierre, o Dioguinho ou o sarcástico primo da Maria Arnalda – seja quem for é sempre o mesmo, vestindo as roupagens que a circunstância impõe, parecendo cada qual um alter-ego do Autor.

Nota-se a sua veia de dramaturgo ou talvez a sua vocação de actor e mestre de Teatro, no rebuscado encarnar dos diferentes personagens. Noutros textos, supostamente, será a voz quente da tia Rosalina que nos leva pelos salões arte-nova da fidalguia, para apreciar arrebiques do traje, sabores e odores de manjares, detalhes de certos quadros e donaires que apenas a sensibilidade feminina consegue recortar.

O livro que aqui vos apresentamos é a pitada para o tempero que A Cidadezinha merece. A linguagem de António Manuel Couto Viana, burilada ao pormenor da filigrana, exacta como golpe de asa, deixando as palavras a escorrer ironia ou riso alvar, transporta-nos a uma época tão distante como o dia de ontem. Quando à roda da lareira ou na mesa do café ouvíamos estas e outras coisas semelhantes.

Ao conjunto do Meias de Seda e d’Os Despautérios, junta-se neste volumezinho a revolta da puta de merda, o desastre do pudim, o grito orgástico do All Right, os bolos das Badamecos, a inesperada Parker do Lopes, a decepção do rei magro ou do tolo Sete Cus, o último voo do Côdeas e, por fim, a impensável atracção do narrador pelo pujante buço e cara cavalar da arrebatadora Cló. São acontecimentos que saltaram dos escaninhos do tempo e ficarão para sempre na memória de quem os ler.

Arquitectada por um ensaísta, que se ancora nas notas de um memorialista, está a obra que um dia se chamará certamente, e simplesmente, A Cidadezinha. Escrita por um poeta, que estuda as cenas com a ajuda de um dramaturgo, depois de condimentadas por um gastrólogo e aprovadas pelo sorriso mágico de um autor de livros para crianças. E todos eles são um só e dão pelo nome de António Manuel Couto Viana.

Por tão rica combinação, o livro que aqui folheamos é, sem dúvida, definitivo contributo para a produção pícara deste Autor multifacetado. Quem o levar para casa pode ficar ciente de que guarda centena e meia de páginas que para sempre farão parte da História da Literatura Portuguesa. É um bem precioso, mesmo que (ou até porque...) a interrogação da capa pareça descabida e a resposta não possa ser dada hoje, pois pertence ao futuro.

Publicado na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 14 de Outubro de 2009

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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