Sentimento do Poema – Novo Livro de Amândio Sousa Dantas, por Cláudio Lima

 

Sentimento do Poema – Novo Livro de Amândio Sousa Dantas, por Cláudio Lima



Cláudio Lima



Amândio Sousa Dantas é, seguramente, o poeta mais produtivo (e provavelmente o mais criativo) da atual lírica limiana. Não o digo por ser a maneira mais fácil e elegante de iniciar uma apreciação sobre o seu mais recente livro: Sentimento do Poema; expresso a minha convicção sincera, fundamentada ao longo de muitos anos de convívio com o seu ao mesmo tempo contido e torrencial veio de dimanação lírica.

Se bem os conto (e deixando de fora participações em obras coletivas e poemas circunstanciais eventualmente espalhados pela imprensa e não mais recuperados), com este livro o Amândio atinge a bonita soma de quinze títulos, sendo que dois deles, Poemas da Emigração (Ed. Ceres, Lisboa, 2010) e Poema sem Fim (id. 2011, este dedicado à memória de sei irmão Luís, prematura e lastimosamente desaparecido de entre nós), são oportunas e estimáveis recolhas (ele prefere chamar-lhes “colheitas”) de toda a sua poesia anterior ao livro que ora temos entre mãos, excetuando Alto Amor em Alto Rio (Ed. Ceres, 2010), que entendeu não incluir.

No ponderado prefácio a Poema sem Fim, título e conceito que nos reporta ao grande Jorge Luis Borges (cada livro representa um acrescento ao Livro), o Amândio, entre outras reflexões auto-analíticas, refere que “um ciclo se fecha (não o do poema mas o do poeta). Há entre eles uma unidade essencial o que me permitiu “colher” todos os poemas num só livro.”  E um pouco mais adiante: “Há em todos nós uma morada existencial, assim, pelo que sei da minha experiência, a interioridade do poema é instrumento comum (e solitário) da própria vida. Não se consegue ver o essencial sem os mistérios da existência”. (pg. 7)

Retenhamos os conceitos de “unidade essencial” e de “morada existencial”, de “interioridade” e de  “experiência” — e teremos encontrado as coordenadas que delimitam o universo poético deste Autor. A acumulação de dados sensoriais e sensitivos (de sentimentos), transfigurada pela essencialidade do verbo. O que impede que a sua trajetória lírica em tempo algum induza uma mera habilidade construtiva de um mero jogo linguístico. Pelo contrário, ela é sempre uma representação do ser em situação; a expressão do sentimento, em que o discurso é mero suporte e veículo da sua substância.

Julgo, pois, que em termos formais e de conteúdo, o presente livro não diverge daquele fluxo contínuo que carateriza e fixa a sua poesia toda, construida de fulgurações e arrebatamentos, síncopes, tropos, apostos, orações intercaladas. Poeta no seu labirinto, em que a própria linguagem nem sempre consegue servir-lhe de chave de evasão, é ali  que, em tensão de espera, em busca de sons e essências, vai dando corpo ao desígnio poético a que se sente convocado; é ali que, palavra a palavra, vai removendo a confusão do caos para instaurar a ordem da harmonia e da luminosidade. Ali onde, no dizer de Maria Andersen (Cardeal Saraiva, 18/01/2013), “adentra o espaço íntimo do Eu e estabelece todos os contrapontos, todo o jogo dialético, pleno de antíteses, de espaços interiores e exteriores, de ambientes claros e escuros.”

Uma poesia alicerçada nestas bases, refletindo as forças antagónicas a que o seu criador, pelo facto de o ser, está sujeito, não poderá facultar leituras lineares, de compreensão fácil e imediata; é uma poesia que postula reflexão e inteira disponibilidade por parte do leitor destinatário; implica um exercício de empenhamento muito mais que uma visita de diversão, não obstante a dimensão estética e lúdica que lhe é intrínseca. O Amândio tem o seu mundo, e a sua obra é a revelação lenta e progressiva dele. Se pertence ao leitor uma margem de liberdade re-criativa, não poderá exorbitar, todavia, desse microcosmos habitado por um espírito ao mesmo tempo inquieto e questionante, (“sou filho da dúvida e do sagrado”, pg 57) aberto aos apelos da vida e à sedução da arte, revelado por uma linguagem densa, envolvente, peculiar.

Não sendo uma poesia subordinada a quaisquer categorias de tempo ou lugar, nela perpassam, no entanto, topos e ocorrências particularmente apelativos ao Amândio: o rio, a ponte, os plátanos, os pássaros, a morada, o amor, a mãe, a mulher. ”Só a força do rio escuto / contra os pilares da ponte” (pg. 31);  “Não se pode abrir o coração / para depois o deixar num lugar qualquer.” (pg. 38); “Onde está hoje o pássaro da infância? / e aquela árvore e seu mistério.” (pg. 43);  “os dedos do poema / abertos na areia / pelas cores do vestido dela.” (pg. 46); “Eu só quero ouvir o que a dor não cala. / O amor se guarda — mesmo quando acaba…” (pg. 49); “A água / da fonte de São João / entrava em casa / à cabeça das mulheres / por cântaros de barro” (pg. 78); “Pela funda tristeza dos olhos de minha mãe, / eu navego cheio de silêncios,” (pg. 91).

E muito, muito mais — a evocação das lavadeiras no rio, a inconsolável perda do irmão-poeta: “As lágrimas transformaram-se / em vidro estilhaçado: / e eu, meu irmão / teu rosto não alcanço” (pg. 40); de todos os afetos, de todas as irrealizadas ou perdidas esperanças e ansiedades, se entretecem estas páginas, se constrói esta poesia sentida e pensada de um poeta que o é sem a menor margem de equívoco ou de exagero. Ele que se identifica mais com as pequenas coisas próximas e familiares do que com complicadas elucubrações mentais; “A metafísica não segue a minh’alma / sou mais de olhos na paisagem” (pg. 126).

Jorge de Sena (Poesia e Cultura, 2005 — obra póstuma) dizia que “não chegamos a dois mil anos de entendimento crítico do que a poesia seja, para continuarmos ainda a discutir o que ela deva ser”. Também esta poesia do Amândio, como fazendo parte do grande fenómeno que atravessa as idades e as dialéticas, se esquiva a esquemas de interpretação estanque; também ela provém daquela matriz densa e fecunda que alimenta o grande mistério do verbo, que Heidegger elege como a casa do ser.

março de 2013

 

 

Três Poemas

 

Natureza

 

Abraço-me aquela árvore

com toda a emoção (destino de verbo)

conheço suas folhas desde a minha infância,

meus cantos se entrelaçam por seus ramos

(parecem altos braços).

Eu vi o sol e suas sombras em cada tarde,

conheci o ar das estações por suas cores,

até ao encontro de meus olhos marejados;

Já não me sei separar da sua idade.

 

– Ó secular, majestoso plátano.

Já seus ramos me falam da minha inocência

em que outrora em suas folhas se quedavam;

ali num sussurro, seu instante amo.

Não temo o olvido – e seja minha herança.

 

Por mim, o sinto passar.

Ó árvore da minha vida.

Seus ramos me saúdam – a fidelidade nos une…

 

(pg. 20)

 

 

 

Poema (parte)

 

As jovens mulheres

as vi cantar

pelas margens de um rio.

Lavavam – para fora –

por sua canseira:

lençóis, cortinados, robes;

senanas a fio.

Estendiam a sua roupa

na areia

ao sol do meio-dia

a corar.

E em grupo cantavam

viradas para a corrente do rio,

amassavam seu pão.

Que alegria sentiam?

 

(pg. 71)

 

 

 

Canto

 

Não importa a literatura, o prémio,

a viagem, o congresso, as palmas no palco.

Somente o sangue do poema

corre na manhã

em louvor

do esquecimento.

 

A floresta há-de estender por cidades inteiras,

crescer ainda mais a sede no deserto, ou gelar a terra

toda. Só o poema é imortal em tudo que vive

e o sol o sabe: quando por seu último brilho

o poema vier em sua direcção…

 

(pg. 116)

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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