João Aurora, por José Cutileiro

 

João Aurora, por José Cutileiro



José Cutileiro
Embaixador



João de Sá Coutinho Rebello Sotto Mayor, 4.º conde de Aurora, que morreu na sexta-feira, 25 de Maio, num hospital de Viana do Castelo onde fora internado dias antes, de pneumonia sobrevinda a queda em casa, foi a enterrar na segunda-feira seguinte em Ponte de Lima onde tinha nascido e onde, desde que há quase 20 anos se reformara do serviço diplomático, vivia entra-o-ano, sai-o-ano na Casa de Nossa Senhora da Aurora, morada ancestral da família; a quem um espasmo de inveja lusitana pusera há 38 anos a alcunha de “O Conde Vermelho” por ter aceitado ir, como primeiro representante de Portugal numa das antigas colónias, de embaixador para Bissau, mandado por governo provisório saído do 25 de Abril recheado de gente considerada até há pouco do reviralho, por escolha do ministro desse governo mais directamente envolvido na descolonização, o republicano e anticlerical dr. Mário Soares – ele que vinha de família tradicional da nobreza minhota, católica e monárquica (“Nós, na Ribeira Lima, temos duas coisas em comum: somos todos fidalgos e somos todos parentes”, explicou-me um dia), deixando de entrada alguma parentela mais bisonha entre ofendida e desconfiada. Passados poucos anos partiria de embaixador para Luanda (de novo, o primeiro) e, mais tarde, para Madrid.

Soares encontra-o em Londres onde fora várias vezes nos meses logo a seguir ao 25 de Abril. Ao embaixador nomeado pouco tempo antes pelo antigo regime havia sido oferecida transferência para Estocolmo, despromoção que ele recusara preferindo ir para casa. O conselheiro Sá Coutinho ficara assim Chargé d’Affaires a. i., e era com ele que o ministro Mário Soares falava nas passagens por Londres. O político antifascista e o diplomata de carreira tiveram os dois sorte. Avesso a lisonja, Sá Coutinho respondia sempre verdade às perguntas que Soares lhe ia fazendo, ajudando este a perder depressa algumas ilusões de neófito. Soares sentiu directamente o homem debaixo das carapaças de diplomata e de monárquico, engraçou com ele, confiou nele e mandou-o para Bissau. No Verão, antes de ele ir para o novo posto, eu e a minha mulher fomos passar um fim-de-semana com os Auroras a Ponte de Lima. À chegada, a Teresa estava mas ele não. Tinha sido chamado a reunião em Lisboa e fora lá integrado de surpresa na delegação portuguesa a cerimónias de independência em Medina do Boé. Vi-o três dias depois no pied à terre de Lisboa de sua mãe, de volta a Ponte de Lima, vestido como de lá partira. Nem um duche tomara mas “a gente habitua-se. Estas peúgas, de manhã, eu assobio e elas vêm”.

O seu sentido de humor, santo e senha para uns, barbacã para outros, faz amigos e amigas rirem em vez de chorarem quando agora nos lembramos dele. Ainda daquele Verão: saí de Londres para Lisboa antes dele e de automóvel; pediu-me para levar o uniforme que alguém se encarregaria depois de mandar de Lisboa para o seu alfaiate em Ponte de Lima. Fui buscá-lo no caminho da saída e quando ia meter-me à estrada, o João disse-me: “Tu guia com cuidado que levas a tua mulher e a minha casaca.” Recebi depois carta de agradecimento de três páginas com descrição engraçadíssima da Ponte de Lima dele e do alfaiate. Não resisti a mostrá-la a Soares que se entusiasmou: “Tem romance na gaveta!” Outra carta escrita em Dacar onde ia apresentar as credenciais a Senghor começa por me dizer que Dacar não é uma cidade é um cheiro que descreve a seguir em quatro páginas admiráveis de tropicalidade proustiana.

O seu último posto foi de embaixador na Santa Sé onde me abrigou uma noite. Gostava de lá estar não só pelas antiguidades e amenidades de Roma mas também pela Secretaria de Estado. “São óptimos. Quando vou fazer uma diligência sabem sempre já o que lhes vou dizer”. Apreciação de profissional que também em Luanda e Madrid tivera de defender cerradamente os nossos interesses em anos muito difíceis.

Cheio de razão e siso, como Ulisses depois da viagem, veio viver entre os seus o resto da idade.

 

Publicado no Jornal Expresso n.º 2067, de 9 de Junho de 2012
Reproduzido na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 29, de Outubro de 2012
com autorização do Autor

 

José Cutileiro

José Pires Cutileiro, natural de Évora, onde nasceu em 20 de Novembro de 1934, é licenciado em Antropologia Social pela Universidade de Oxford, tendo obtido em 1968 o grau de Doutor.

Após o 25 de Abril, foi nomeado conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, cargo que desempenhou de 1974 a 1977. Foi nomeado, de seguida, embaixador e representante de Portugal junto do Conselho da Europa, até 1980. Foi embaixador em Maputo de 1980 a 1983 e representante permanente de Portugal junto da Conferência de Desarmamento na Europa, em Estocolmo de 1984 a 1986. De 1987 a 1988 foi director-geral dos Negócios Político-Económicos do MNE. Negociou a adesão de Portugal à União da Europa Ocidental e foi chefe da delegação portuguesa às consultas com os Estados Unidos sobre a utilização da base aérea das Lajes, nos Açores, em 1988 e 1989. Foi embaixador na África do Sul de 1989 a 1991. Nesse ano  tornou-se conselheiro especial do Ministério dos Negócios Estrangeiros para a presidência portuguesa da Comunidade Europeia. Coordenou a Conferência de Paz para a Jugoslávia presidida por Lord Carrington, de Janeiro a Agosto de 1992,

Presidia ao Instituto Diplomático desde Março de 1994 quando assumiu a secretaria-geral da União da Europa Ocidental (UEO), a 16 de Novembro de 1994, numa altura em que a UEO ganhou nova vida, após a ratificação do Tratado de Maastricht. Foi reconduzido na secretaria-geral da UEO em Maio de 1997.

De 2001 a 2004 foi George F. Kennan Professor no Institute for Advanced Study, Princeton, reatando brevemente carreira académica (Research Fellow de St. Antony’s College, Oxford, 1968-1971; Lecturer da London School of Economics), 1971-1974). Publicou livros de poesia, antropologia social e política internacional e, sob o pseudónimo de A.B. Kotter, correspondência ficcionada.

Desempenhou funções de Conselheiro Especial do Presidente da Comissão Europeia Dr. José Manuel Durão Barroso para análise de questões políticas.

Participa semanalmente, aos domingos, depois das 12 horas, no programa Visão Global da Antena 1, no qual é passada em revista a vida do Mundo, com as histórias que marcam a actualidade. Publica todos os sábados um obituário (In Memoriam) no semanário Expresso e todas as quartas-feiras uma crónica de política internacional (Bloco-Notas) no Jornal de Negócios.

Conheceu o embaixador João de Sá Coutinho, Conde d’Aurora, em Londres quando ensinava antropologia social na London School of Economics e Sá Coutinho era conselheiro da embaixada de Portugal.

 

Nota do Editor
O Embaixador José Cutileiro faleceu na madrugada de hoje, 17 de Maio de 2020, em Bruxelas, onde vivia há vários anos. Tinha 85 anos de idade.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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