Perfil de um Grande Português: O Conde d'Aurora

 

Perfil de um Grande Português: O Conde d'Aurora



Artur Anselmo



Escolho as palavras para situar o Conde d’Aurora na sua época, desde os fins do século XIX, em que começou a sentir a luz, a água e o sol limianos, até aos anos 60 deste nosso século, em que se despediu do Porto ainda romântico, cidade-moldura das andanças profissionais do integérrimo magistrado. Na busca do vocábulo adequado, logo me dou conta do adjectivo estereotipado: mas não esmorece o ardor da tecla dactilográfica da minha velha Hermes 3000, «made in Switzerland», donde extraio desde há mais de trinta anos o caldo quente da sobrevivência. Planeara reconstituir o perfil do Conde d’Aurora até conseguir aspirar o essencial do seu espírito de eleição, ressumando nobreza por todos os poros, e para isso evitara obstinadamente o computador envidraçado e a moleza das palavras petrificadas por quantas televisões e satélites e auto-estradas da comunicação vão desaguar ao lugar-comum desta sociedade consumidora de chavões e frases feitas. Ousara pensar uma escrita seca, feita de pequenos períodos, tão ao gosto do Conde d’Aurora, um texto escorreito, depurado do adjectivo fácil, e logo me acode aquele «integérrimo», de requerimento em papel-selado-que-já-não-há, a estragar o arranjinho combinado com o meu heterónimo de crítico bissexto, ex-aluno de Vitorino Nemésio e David Mourão-Ferreira, aos vinte anos redigindo rodapés de crítica literária com tal aparente seriedade que os criticados, conhecendo-me depois em carne e osso, diziam: «Fazia-o mais velho».

Paciência. Vou-me ao Freud e ao Lacan para entender o lapsus calami e regresso em paz com a minha consciência, decidido a não deixar fugir o pretexto. Na verdade, o «integérrimo» serve-me para qualificar tanto o magistrado (de que não falarei) como o escritor cuja obra aqui me trouxe. Por um motivo simples: o de ter sido o Conde d’Aurora um dos integralistas que melhor defenderam as ideias do grupo formado em torno da doutrina da Tradição Nacional, de que António Sardinha era indiscutível mentor. «Integérrimo» foi, de facto, não tanto porque pertencesse a uma família de aristocracia de sangue mas principalmente porque, desde muito cedo, compreendeu que Portugal, estilhaçado por lutas internas de regime, de religião e até de economia política (o fadário da «casa sem pão», em que todos falavam alto demais para um país tão pequeno), tinha de reencontrar-se com o seu destino histórico, sepultando ódios fratricidas e refazendo energias estioladas pelas intermináveis Lutas Civis. Ele, o aristocrata, não queria a aristocracia, cujo sentido etimológico (governo de uns tantos) o aterrava; queria para Portugal, isso sim, um regime onde a Nobreza tivesse direito de cidade, sem ter de se aviltar ou de se renegar.

Enfrento, desde já, uma questão fulcral: e o que era a Nobreza para o Conde d’Aurora? Ele próprio o explicou pacientemente num dos mais belos textos que escreveu acerca de Eça de Queirós, a quem o ligavam afinidades muito profundas, umas de ordem literária e estilística, outras de ordem ideológica. O texto intitula-se precisamente Eça de Queiroz e a Nobreza, é programático no ponto de vista semântico e sociológico ao pretender fixar o sentido exacto da palavra «nobreza», e desfaz quaisquer confusões a respeito de um vocábulo nem sempre usado com rigor. Ora, depois de citar La Tour du Pin, segundo o qual o «duplo jogo de assimilação e eliminação» evita que a Nobreza seja uma «classe fechada», o Conde d’Aurora põe frente a frente duas situações extremas:

 «Aquele que constrói a sua casa e arroteia e arredonda umas terras, e encabeça um casal e um pequeno núcleo de bens para os filhos; e sabe governar as suas terras e os seus subordinados, ligados como ele ao amor da terra, à sua cultura carinhosa, às suas vicissitudes, e com eles reparte, cristã e familiarmente, o mesmo pão, e subiu ao mando por capilaridade social, e vive com eles em quintas e casas pardas, sem veludos ou nylons, procurando na lei de Deus o bem-estar material e moral dos seus subordinados: esse é da nobreza; é o primeiro elo, mas começa a cadeia, dourada apenas ou até de aço polido de charrua.

Mas aquele que perdeu as terras e o mando, e a autoridade sobre gentes, e a função administrativa e social, e embora descendente de heróis cimenteiros da nossa História, espectador somente já; recolheu a um segundo andar alfacinha e se desligou dos tempos activos do verbo servir: ou é apenas um emigrado, ou é como o ramo da roseira que regressa à pequenina flor brava só de quatro pétalas, e sem nova enxertia não volta a dar a perfumada e colorida flor

E depois de aconselhar aos nobres sem nobreza que passem a outros «os estandartes de Ormuz e Malaca, os pendões de Alfarrobeira e Montes Claros», sublinha: «Nobreza é apenas o cume da sociedade, os homens-bons, ser-se limpo de mãos, servir e não servir-se, a preocupação de honrar o nome!».

No pólo oposto da Nobreza, tal como a concebia o Conde d’Aurora, estavam os fidalgos rurais (fidaurgos e fidaurguinhos, na típica fonética minhota) da estirpe d’O Pinto, que dá o título ao romance publicado em 1935. Não precisara sequer Francisco Pinto de recolher a um segundo andar alfacinha para perder os hábitos da nobreza. Situacionista empedernido, acomodava-se a qualquer regime ou guinada política: monarquia ou república, direita ou esquerda, pluripartidarismo ou ditadura militar, de todo o ramo fazia o seu poleiro. O Pinto era sempre o mesmo cacique eleitoral que nunca perdia, que sempre ficava por cima, até ao momento de passar para o outro mundo. Boçal, inculto, ignorante, tornou-se ladino, calculista, espertalhão: como lhe faltasse o voto de um eleitor para fazer o pleno, trapaceou e mexeu os cordelinhos com tal habilidade que trouxe a ovelha ranhosa para o redil. Viera do constitucionalismo monárquico, atravessara a República e chegara ao Estado Novo sem a mais leve beliscadura na sua fama de vencedor. A Nobreza tê-lo-ia vomitado, se a deixassem ajustar contas com o fidaurgo.

Esta separação entre nobreza legítima e falsa nobreza, distinção sempre marcada na obra do Conde d’Aurora, aparece já no seu primeiro romance, D. Aleixo (1921), em cuja trama há um fundo autobiográfico bem perceptível, desde a evocação de Coimbra nos primórdios da República até à descrição de uma fazenda de chá-mate na Argentina e ao regresso do protagonista às terras limianas. Aqui e ali, umas notas de humor inimitável, como a proposta, que o narrador apresenta, de se completar a formação universitária dos estudantes de Coimbra com a aprendizagem da esgrima e da equitação, do tiro-ao-alvo e do jogo-do-pau. Ora, pelo que toca à nobreza, não há muitas diferenças, no essencial, entre a figura de D. Aleixo dos anos 20 e a do Pinto dos anos 30, pois ambos são fidalgos mas não são nobres: como o Pinto, também D. Aleixo cortara cerce as ramificações que o prendiam aos antepassados. É certo que o ligavam à terra limiana laços sentimentais: mas não o atraía uma determinada casa de família, antes a vaga esperança de readquirir espaço na região; não o perseguia qualquer desejo de reconciliação com os manes familiares, antes o apetite do mando sobre gentes locais. Depois de tentar o curso de Direito em Coimbra, D. Aleixo descobre em si dotes insuspeitados de artista plástico; e, quando os pais morrem, vende tudo – casa, terras e animais – para experimentar a sorte em Paris, enquanto um dos seus dois irmãos emigra para o Brasil e outro se contenta com um modesto lugar burocrático no concelho. De Paris passa para Inglaterra e daqui zarpa para a Argentina, via Rio de Janeiro. O que fundamentalmente lhe interessa é fazer fortuna e regressar rico à terra portuguesa; com este único objectivo, arrasta em Buenos Aires uma existência triste, vivendo de expedientes, e, auxiliado por um colega de Coimbra instalado na Argentina, arma a sua tenda de azeiteiro, palavra bem minhota que vai caindo em desuso nestes tempos de moeda única europeia. A presa é uma viúva americana, herdeira dos avultados capitais de um marido negociante em chapéus (da fábrica Oh! My Hat L.td, impossível designação mais feliz…) com a qual faz um casamento de conveniência. Para atingir os seus fins sórdidos, recorre aos pergaminhos familiares de fidalgo dos quatro costados, suficientemente apetitosos para cativar o ricaço Don Hernardo, sua mulher e sua cunhada, Mrs. Violet Briggs, a viúva dos chapéus. D. Aleixo assume com estadão a personagem de Visconde da Torre da Moura, vigésimo terceiro representante dos Moscosos e dos Abreus (“Abaixo de Deus, Abreus!”), e ainda apto a usar armas dos Coutos, dos Bezerras, dos Gomes e dos Eças. De regresso a Portugal, instala-se o casal num solar limiano adquirido pouco antes com o dinheiro da americana, mas esta logo percebe que aquilo não lhe diz nada e não tarda a embarcar para a América. Cercado de conforto, de bons cavalos, de gente submissa, o Visconde prepara-se para, finalmente, sorver a vida regalada de fidalgo limiano quando encontra a morte, por excesso de velocidade, numa corrida suicida de dog-cart puxado por uma parelha de frenéticos cavalos de Auteuil.

São evidentes as afinidades entre os dois livros de ficção romanceada, apesar da distância de catorze anos que os separa. D. Aleixo não pertence, claro está, à família social de Francisco Pinto, desde logo porque o primeiro manifesta (ao menos antes de se aburguesar) interesses artísticos e culturais, enquanto o segundo é a encarnação viva do desprezo pelas coisas do espírito. Mas a incompatibilidade que ambos evidenciam perante os vínculos familiares de cada um, essa faz deles irmãos na mesma ânsia sôfrega de carreirismo, um por dinheiro (D. Aleixo), outro por instigação do mando gratuito (o Pinto). Podemos notar aqui a marca inconfundível das ideias em que se formou o Conde d’Aurora, integralistas em sentido amplo, nacionalistas e populistas stricto sensu. Ao postergar a fidalguia corrupta, perpassa na obra do escritor uma tendência irrecusável para a regeneração nacional, que os acontecimentos da 1.ª República vieram impor como questão de sobrevivência. Num estado de espírito aparentado ao de Gonçalo Ramires, que, no romance queiroziano, decide partir para África por achar que o portugalório europeu era uma choldra insuportável, o Conde d’Aurora começara desde muito novo a defender, em conferências e artigos, um nacionalismo que permitisse reaportuguesar Portugal, não com os olhos postos nas glórias quinhentistas, que naturalmente pertenciam ao passado, mas apontando às novas gerações o exemplo vindo de África, do esforço abnegado daqueles que, como Capelo, Ivens, Silva Porto, António Enes, Mouzinho, Eduardo Costa, Norton de Matos, em vez de lugares à mesa do orçamento (como então se dizia), procuravam, disciplinadamente, cumprir da melhor forma as missões que lhes eram confiadas. Por isso, o Conde d’Aurora fazia suas as palavras de Eça de Queirós acerca de Antero, que, aliás, se aplicavam a todos quantos, no primeiro quartel deste século, descriam do rotativismo, do votismo e do devorismo:

 «Ele, de resto, ainda acreditava então que maneiras e erros provinham do vício da incompetência da pequena Casta Política que, através de Lisboa, domina a Nação – e que, no fundo do povo, existia intacta uma grande energia viva, capaz de reconstruir, sob a direcção da Virtude e da Capacidade, a Ordem na sociedade portuguesa

A este anseio, a que o Conde d’Aurora chamava simplesmente «portugalidade», liga-se, no meu espírito de leitor, uma persistente campanha em favor da paisagem portuguesa, do ecossistema limiano, da defesa do ambiente, enfim, a que o autor do Roteiro da Ribeira Lima se entregou de alma e coração. Em primeiro lugar, nos seus roteiros turístico-culturais (não só o da Ribeira Lima mas também o do Porto e o dos caminhos de Santiago); em segundo lugar, nos seus ensaios acerca de Eça de Queirós; em terceiro lugar, nas crónicas enfeixadas sob o título de Mal Notadas Letras; em quarto lugar, em conferências literárias, de que destacaria a que proferiu em 1930, em Bragança, acerca Do sentido da moderna literatura; em quinto lugar, em trabalhos de investigação etnográfica, desde o clássico A Vida do Linho até à preciosa Monografia do Concelho de Ponte de Lima; por fim, de um modo implícito mas nem por isso menos veemente, no Brasil, Ida e Volta. É preciso lembrar, em obediência à verdade histórica, que as questões do Ambiente, na época em que viveu o Conde d’Aurora, não tinham a pertinência que hoje, sob pressão dos horrores quotidianos, se lhes atribui: o país acordava para a industrialização, que aliás muitos consideravam uma espécie de remédio para todos os males endémicos da população, e os economistas mais avançados tinham dificuldade em aceitar o primado dos problemas monetários sobre os do desenvolvimento acelerado, a ponto de lamentarem que o Plano Marshall não tivesse abrangido o Portugal do vergiliano Salazar, que as auto-estradas fossem uma miragem e que os cantoneiros continuassem a florir pachorrentamente as bermas das boas estradas de paralelo a que se afincava o Estado Novo entesourador.

De facto, o Conde d’Aurora foi um precursor dos movimentos ecologistas que hoje felizmente incomodam a má consciência dos povos poluidores deste planeta sem substituto. Educado à boa maneira espartana, não só queria ver os estudantes de Coimbra a fazerem ginástica mas também sugeria que eles se lavassem mais vezes. Mas, ao lado da falta de higiene corporal, lamentava e causticava a penúria de higiene estética: poucos como ele souberam manter o inconformismo diante de decisões camarárias de lesa-património, no Porto, em Viana, em Ponte de Lima, em qualquer terra onde se arrasou uma fonte para instalar uma montra comercial, se mutilou uma fachada para se engaiolar um aparelho de ar condicionado, se deitou abaixo uma casa setecentista para erguer um arranha-céus daqueles a que chamava «direito, esquerdo, elevador», se sacrificaram árvores, se entaiparam escadas, se derrubaram muros seculares para dar lugar a edifícios monstruosos, como o Palácio da Justiça do Porto, erguido sobre a campa rasa em que se transformou o solar dos Meireles, na rua dos Fogueteiros. O abate indiscriminado de árvores, sobretudo, deixava-o transido de pavor: «60% da população da Cidade – o seu belo arvoredo! – vai-se…» Isto escrevia a propósito do Porto, e se fôssemos hoje a actualizar as contas, talvez andássemos já pelos 90%, mesmo descontando o que se proclamou aos quatro ventos como futuro Parque da Cidade, que por enquanto não é senão um Aterro do Flamengo em miniatura.

Ligado ao verde, a água, porventura a maior paixão sinestésica do Conde d’Aurora. Num passo da sua obra evoca a «água cantante» a cair na «taça de velho granito do terraço», chamando-lhe «música de embalar da infância distante»; noutro informa que a água jorrava de quatro carrancas, acrescentando: «De pequenino fui embalado ao ritmo do gotejar salmodiado desta água, da água destas bicas. E sempre, por longes terras, em exílios políticos ou terapêuticos, em quaisquer viagens até – sempre, sempre a mais doce lembrança e recordação da casa paterna eram as noites e a música embaladora da água no terraço». Talvez seja um lugar-comum dos escritores limianos esta nostalgia da água: poetas como Diogo Bernardes, António Feijó, Carlos Lobo de Oliveira, dir-se-ia que escrevem água onde outros escreveriam sol. Daqui a diferente luminosidade que dos seus versos se entrevê, como se as imagens liquefeitas tivessem elas próprias luz interna e exterior. Uma constante limiana, enfim, a presença da água nos textos do Conde d’Aurora. Só que – penitência de poeta – incapaz de tornear obstáculos físicos elementares, como esse que impede a água de ser cantante quando ao seu canto se sobrepõe um ruído mais intenso, seja o do transístor, seja o do alto-falante. Fica-se mesmo com a impressão de que estas duas aberrações sónicas do nosso tempo eram visceralmente incompatíveis com o temperamento estético do Conde d’Aurora, e poucas coisas o incomodavam tanto como essa poluição:

 «O alto-falante, tipo barraca das panelas de alumínio, expelindo música de disco, fácil, dez vezes maior que o natural, a substituir, por todas as partes, as bandas de música, as orquestras, as tocatas, os tangedores, todo o lirismo ancestral e rácico; o vizinho a fechar a luz, a vestir o casaco de pijama, a abrir as goelas todas ao rádio e a vir para a janela ver o efeito sobre o pacífico cidadão necessitado do chamado trabalho de gabinete; numa palavra, a diversão ou cultura (leia-se incultura) do tipo médio (que aliás não existe mas sim a massa, ou seja, o primário); e termos, todos em geral e cada um em particular, de sofrer tal suplício jamais inventado nos povos mais requintados na arte da tortura, parece-me exceder os limites da paciência e da resignação humana…»

«Se vivo, o Padre José Agostinho de Macedo tornaria a esfolar a besta» - escreveu um dia Tomaz de Figueiredo a propósito do famoso polemista. Se vivo, digo eu, o Conde d’Aurora insistiria em bater na mesma tecla, mas agora com mais força, pois aí estão os alarmes dos carros, aí está a histérica televisão-que-temos e aí estão outras pérolas a enriquecerem a panóplia de ruídos que, hoje como ontem, impediriam o escritor limiano de ouvir cair água no seu terraço: «Vejo-a mas não a oiço. Chego mesmo a invejar, Deus me perdoe, o habitante urbano de um burgo policiado, a gozar da sua varanda os jorros de água das viaturas da limpeza municipal, na rega diária das artérias citadinas.» Com estas palavras, transmite-nos o Conde d’Aurora uma espécie de necessidade interior de um relógio-de-água: o tempo físico vai desgastando o corpo, mas a memória da água lava, relava e sedimenta as coisas, repondo em lugar selecto o essencial da vida humana e rejeitando como cisco impuro o transitório e acidental. Homem, Terra, Água, Fogo: a conjunção do alfa e do ómega no princípio e no fim dos tempos. Mundo existencial: Homem e Fogo; mundo das essências: Terra e Água.

Com razão lamentava o Conde d’Aurora que as vilas e cidades de rio – de que Ponte de Lima, Viana e o Porto eram exemplos elucidativos – não cultivassem mais aquilo a que chamava «o reatamento nupcial da Terra e da Água». No seu platonismo que parecia vindo da lonjura dos séculos, sempre as ideias-puras o fascinavam, e estas, afinal, tanto explicavam a vida individual como a colectiva.

No fundo, o escritor que tantas páginas consagrou à Ribeira Lima e ao Porto tinha um respeito sagrado pela individualidade cultural do povo português. Etnógrafo avisado, era também viajante impenitente: via, olhava à sua volta, captava ínfimos traços de identidade na alma do povo, tal como ela se reflecte nos costumes, no fazer, no estar e no ser. Na esteira de etnólogos eminentes – um Leite de Vasconcelos, um Jorge Dias, um Orlando Ribeiro – fiel aos ensinamentos do chamado Grupo da Portugália (de Rocha Peixoto e Alberto Sampaio), procurava na cultura de um povo, de qualquer povo, aquilo a que Jorge Dias chama o seu «conteúdo espiritual». Daí, por coerência estrutural – numa época em que ainda não se falava de estruturalismos –, a defesa intransigente da religiosidade popular, que levou o Conde d’Aurora, a certa altura, a soltar o brado em favor da «deslaicização» das romarias, pela manutenção do espírito religioso que esteve na origem de todas elas, pelo reavivamento do teatro das Floripes e dos Turcos, pela conservação do traje regional, pela protecção às bandas populares e aos coretos tradicionais. Regionalista no mais puro sentido da palavra, a sua campanha em prol do restabelecimento da província de Entre-Douro-e-Minho, contra o espúrio e burocrático Douro Litoral que fez acantonar artificialmente os minhotos nos distritos de Viana e de Braga – como se os poveiros e os vila-condenses, assim como alguns ribeirinhos do Ave, não fossem também minhotos –, essa campanha sem eco até hoje, agora que tanto se torna a falar de regionalização, foi uma das batalhas mais estrénuas que travou. Punha nisso o mesmo entusiasmo com que estudava os problemas e segredos da lavoura minhota ou a poesia de autores portugueses e brasileiros de ascendência limiana, dos irmãos Pimentas (Diogo Bernardes e Agostinho da Cruz) ao já então clássico António Feijó, a Jorge de Lima e a Maria Manuela Couto Viana. Com Alceu Amoroso Lima (o conhecido ensaísta brasileiro Tristão de Atayde) e Luís da Câmara Cascudo, percorreu, palmo a palmo, a paisagem limiana, em busca de quanto património espiritual, comum a Portugueses e Brasileiros, se mantinha vivo, cá e lá. Foi, aliás, o Conde d’Aurora, a par de Vitorino Nemésio e Luís Forjaz Trigueiros, um dos raros intelectuais portugueses que sentiram o Brasil como ele é e o entenderam na sua imensa complexidade: desde o longínquo ano de 1919, em que se expatriou por motivos políticos, até 1954 (data da viagem que deu origem ao famoso livro de crónicas intitulado Brasil, Ida e Volta), teve sempre uma relação naturalmente fraterna com os «lares do Brasil, de tão viva e alterosa chama, (…) os mais sólidos e mais afectivos de aquém-mar».

Voltando ao Conde d’Aurora roteirista, talvez seja oportuno lembrar que o estilo do Roteiro da Ribeira Lima (livro com edições em 1929, 1939 e 1959) encanta ainda hoje os seus leitores mais devotados. E há boas razões para que assim seja: a par de informação histórica joeirada nas fontes históricas mais autorizadas, sempre o Conde d’Aurora sabe encontrar a dose de sal mais apropriada aos pratos que vai servindo ao longo das páginas do Roteiro: uma curiosidade de que ninguém guardara memória senão ele, um acontecimento pitoresco, um episódio grotesco, uma nota poética, uma digressão mais ou menos rectilínea; aqui um cruzeiro com história, ali uma pedra que levou sumiço, agora um ângulo inesperado de qualquer rua, depois um fio de ironia: sempre e sempre o cavaqueador mais fino e mais elegante que esta região teve um dia. Alguns passos são garrettianos, outros parecem irmãos do melhor Ramalho, outros denotam clara influência queiroziana, outros lembram estranhamente Raul Brandão, outros ainda parecem terem sido lidos previamente a esse D. Sebastião que se chamou António Sardinha, à lareira de Portugal. As mesmas qualidades estão presentes em certas observações da Monografia do Concelho de Ponte de Lima, das quais salientarei as que dizem respeito à Feira, aos Transportes, ao Turismo, aos Cicerones e às Alcunhas. Ouçamos dois bons exemplos deste talento comunicativo, que mostram como o Conde d’Aurora rejeitava ostensivamente o lugar-comum dos guias turísticos. Sobre o Turismo, precisamente, escrevia ele:

 «Se pretendes, leitor, aquele turismo bitolado, marca séc. XIX, acaso nascido em Melbourne, criador do vocábulo “Palace”, deus casamenteiro do Cook com a W. Lits (noite de núpcias no train bleu, em carruagem sleeping AfgY, apadrinhados pelo Baedecker, em regime dotal de traveler cheques, lua de mel orientada para um dancing, um casino e mais diversões selects, à vista do slogan “ne pas se pencher”); aquele turismo como que alimento já mastigado em polpa e reduzido às calorias e vitaminas indispensáveis, espécie de sebenta explicador de esforço mínimo: não te dirijas a Ponte de Lima

E acerca dos Cicerones de Ponte de Lima, estas linhas:

 «Se demorares na Vila, turista amigo, dize ao estalajadeiro para chamar o Pilauta, o Chico Marchante, o Bota-a-linha, o Pai-Quim, um dos Regueiras ou um dos Lãezinhos. Não ajustes: não se trata de mercenários ou profissionais. Faz-te recomendado de alguém conhecido (D. Ruy da Câmara, Chaby, algum político avançado). Convida o autóctone a um passeio ao ponto que desejas visitar. Ele arranja-te garrano, se for mister; carrega-te o farnel; fornece-te cão, jornaleiros, barco, consoante se tratar de caçada, excurso arqueológico, pescaria ou simples digressão.

Dá-lhe de comer e beber – (primum bibere!) – e gratifica-o como entenderes. Quanto a erudição: armas reais é qualquer escudo; os mouros podem ser do século XVIII; e a respeito de nomes, pode falar-te no “Conde do Paço” e significar o Conde de Calheiros, no “Visconde de Vila Franca” e querer dizer o da Barrosa, no “Conde de Pessegueiro” e referir-se ao de Paço de Vitorino; e o “Dr. do Resisto” é sempre o Conservador do Registo Civil. “Três quartos para uma hora” são 12 h 45 e não meio-dia e um quarto. Toma muito cuidado com a hora velha e a nova. E lembra-te que o alqueire é de 17,25 L, o cabaço de 12 L, a vara de 1,10 m e o arrátel de 459 gramas

Para a sensibilidade de alguns leitores (que nem precisam de ser tripeiros de gema), a obra-prima do Conde d’Aurora como roteirista é, porém – e não vai na adversativa sombra de desfavor para o livro da Ribeira Lima – o Itinerário Romântico do Porto, obra de maturidade plena. Publicado em 1962, este livro tem os habituais encantos da prosa auroriana mais o fascínio de uma contensão formal raramente vista em obras do mesmo género. Muitos escreveram sobre o Porto antes do Conde d’Aurora: fizeram-no, entre outros, o Padre Rebelo da Costa no século XVIII, Alberto Pimentel no século XIX e Artur Magalhães Basto e Carlos de Passos no século XX; e depois do Conde d’Aurora vieram obras não menos singulares, desde a de Sant’Anna Dionísio até às de Hélder Pacheco. Pois bem: nenhuma se parece com o Itinerário Romântico. E refira-se, a propósito, que o adjectivo «romântico» não significa aqui «da época do romantismo» mas tão-somente «de um passado em vias de extinção» nesse ano de 1962 e hoje, por assim dizer, no estertor da agonia. Não sou eu que o digo: é o insuspeito Álvaro Siza, quando há dias, em resposta a um inquérito jornalístico, dava o Porto como moribundo. A diferença de pontos de vista é fundamental: enquanto eu andei pelo Porto como estudante liceal, Siza é, ele próprio, parte integrante do Porto.

Isto que toda a gente vê e lamenta – a destruição do Porto a bisturi de falso médico metido a empreiteiro – viu-o, há trinta e tal anos, em pleno regime de censura à imprensa, o Conde d’Aurora. Inconformado com o vendaval, entoava o Memento da memória dolorosa. Mas não se limitava a escrever (e nisto há um paralelo evidente com o que Hélder Pacheco faria muitos anos mais tarde); fotografava, captava instantâneos de objectos, pessoas, situações, casas, ruas, antes que desaparecessem para sempre. Não resisto a assinalar uma coincidência do foro da astrologia judiciária: o Conde d’Aurora nasceu com o cinema, no mesmo ano em que Aurélio Paz dos Reis produzia no Porto os primeiros filmes portugueses (A Feira da Corujeira e a Saída da Fábrica Confiança). Ora, ao longo da sua obra de escritor, são constantes as referências do Conde d’Aurora ao cinema, e estou mesmo em crer que alguns segredos da técnica narrativa – no romance e no conto – os terá detectado no cinema, antes de os experimentar na literatura. Aliás, e já que a referência ao cinema veio encostada como mexilhão ao rochedo portuense, gostaria de lembrar a particular afeição que o Conde d’Aurora votava ao Douro, faina fluvial, de Manoel de Oliveira, um documentário clássico do cineclubismo e de todas as antologias – passadas, presentes e futuras – do cinema português. Fotografia e cinema faziam parte dos hábitos familiares do Conde d’Aurora: ele foi operador-de-imagem do Porto, e com tal maestria que o seu Itinerário Romântico ficaria irreconhecível, diminuído e truncado, sem as fotos que o autor captou e com as quais se ilustrou o livro. Às fotografias acrescentou legendas, algumas com tal chiste que valem por poemas herói-cómicos. O riso do Conde d’Aurora é sadio e frontal como manhã de sol primaveril em terras limianas.

Romancista, contista, ambientalista, cronista, etnógrafo, roteirista, crítico… Para o retrato ficar completo só faltam o lavrador e o juiz, cuja actividade conheço apenas superficialmente. Mas não duvido de que, a escrever ou a administrar a sua Casa (aqui no sentido tradicional de «família»), a pensar ou a julgar questões de Direito, o Conde d’Aurora foi, na inteireza do seu carácter, um vulto singular, dos que enobrecem a espécie humana através dos tempos – e que, por isso mesmo, perduram na memória afectiva e cultural do povo a que pertencem. E mais: um grande Português.

 

(*) Conferência proferida em Ponte de Lima no dia 27 de Abril de 1996, por ocasião do centenário do nascimento de José de Sá Coutinho, 3.º Conde d’Aurora,  repetida em Lisboa, no “Círculo Eça de Queiroz”, no dia 28 de Maio do mesmo ano, e publicada na LIMIANA – Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º39, de Outubro de 2014.

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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