Carlos Lima, um Advogado com Letra Grande – O ADVOGADO

 

Carlos Lima, um Advogado com Letra Grande – O ADVOGADO



Augusto Lopes Cardoso
Antigo Bastonário da Ordem dos Advogados



Ao contrário do hoje politicamente correcto, sou dos que entendem que um advogado não deve ter currículo. A razão é simples. Ele não deve inscrever em algo desse nome os seus casos profissionais, perante os quais melhor é apagar-se no silêncio do seu gabinete e que não deve comentar na ribalta. A prevalência será do cidadão que pede Justiça e que ele foi chamado (ad vocatus) a representar. Assim, o vedetismo está nos seus antípodas, e, mais, urge que esteja, dentro do mais rigoroso sentido deontológico. No entanto, a "boa fama", essa, instala-se no meio judiciário e fora dele e a "aura" é algo inapagável, e ambas são resultados naturais, não auto-proclamados, do respeito que o advogado conquista no seu dia a dia vocacionado. O mérito avoluma-se quando se difunda com naturalidade que algo superior exorna um percurso profissional, desde um visível sentido de serviço, e não de auto-serviço e/ou ao ser sentido como figura de causas, completando o patrocínio de uma pessoa concreta com fortes ideais.

Nesta breve reflexão enquadro, por paradigma, o Dr. António Carlos Lima, por todos conhecido mais por Carlos Lima, com o qual tive o privilégio de lidar ao longo de muitos anos.

Seria atrevimento imiscuir-me na reserva da sua vida familiar, reserva que ele tanto preza, mas seria injusto, pelo menos, esquecer o exemplo conjugal que ele sempre foi para os amigos, transparecido na ternura amorosa vivida com a simplicidade de quem anda todos os dias. Também não deve ser esquecido o seu empenhamento cívico, bem mais do que político, como um dos fundadores do PPD, e das causas e ideias intelectualmente bem estruturadas, e porventura os "amargos de boca" que essa atitude ideal lhe trouxe. Pela minha concreta experiência seria ainda a maior ingratidão não realçar a sua incondicional amizade, de que tanto sou devedor em múltiplas e generosas circunstâncias.

Mas neste momento procuro sobremaneira evocar o Advogado, tal como eu o conheço, e creio todos conhecerem. Seguramente um lutador, erudito, estudioso (com o benefício dos seus anos de docência universitária), sólido na doutrina, perspicaz e arguto, temível e terrível no silogismo jurídico como na presença e intervenção na barra. Por exemplo, inscrito no currículo do grande Bispo que foi D. Sebastião de Resende estará por certo a extraordinária e corajosa defesa daquele que foi o seu Advogado. As suas peças são de uma beleza luminosa e comovente, revelam um alicerce cristão numa firmeza jurídica difíceis de igualar na objectividade, serenidade e antecipação conciliar, e arrostaram com o que de mais politicamente incorrecto havia na altura. No currículo do famoso "caso Cabora (Cahora) Bassa" está inscrito um trabalho insano deste escondido Advogado de múltiplas vestes, como é também a da Arbitragem.

Centrar o meu testemunho no Advogado, que sempre foi o Dr. Carlos Lima, não se revela difícil para outrem se o reportar à sua confissão publica: «Como acontece à generalidade dos colegas, também a mim se abriram por mais de uma vez na vida oportunidades de fazer outras coisas para além da advocacia, porventura com maior proveito material e seguramente com menos esforço e menos preocupações. A concretização de várias oportunidades nem mesmo teria exigido que renunciasse, ou renunciasse de todo, ao exercício da profissão. Sempre tive, no entanto, a ideia e sentimento muito vincados de que a advocacia não se compadece com a acumulação e dispersão de actividades, de que as suas exigências e sérias responsabilidades reclamam, pelo contrário, uma inteira disponibilidade de espírito e uma constante concentração de esforços. Assim entendendo as coisas, e posto perante hipóteses que iam ao arrepio desse entendimento, tive naturalmente de escolher e optar. Mas fi-lo em todas as circunstâncias sem hesitações nem dúvidas. Optei sempre por ser advogado, Por ser exclusivamente advogado.(1)». Tinha então apenas 27 anos de profissão quando aceitou ser eleito Bastonário da Ordem dos Advogados e reconhecia, sem querer destacar-se, que «como sucede quanto aos demais advogados, tem sido uma vida sujeita a constante erosão, num equilíbrio eternamente instável, feita de incertezas e expectativas, vividas ora nos sobressaltos agitados das corridas contra o tempo ora na angústia penosa da solidão», «um viver intenso e multiforme, numa cadeia ininterrupta de alegrias e amarguras, que são sempre indispensáveis para modelar e enraizar as grandes "ligações" e fidelidades.»(2).

Apenas o «modo efectivo de realização pessoal e profissional» que confessa pela ligação e fidelidade que o «prende à profissão de advogado»(3), tem o sentido profundo naquilo que ele entende como valores cimeiros desta, que declara desde logo e pratica de seguida no seu fecundo mandato como ligação permanente a «todos aqueles que, de uma ou outra maneira, colaboram na administração da justiça(4)» – como hoje faz falta esta postura!

É assim lapidar o que proclama a esse respeito: «Li algures que vêm aflorando desde há séculos vozes que, invocando razões nem sempre coincidentes, têm anunciado o fim mais ou menos próximo da nossa profissão. Também no nosso tempo se podem encontrar ecos dessas vozes, renovando aqui ou ali, por vezes com insistência, o fatídico anúncio. Já se apontou mesmo como explicação do nosso previsto fim o facto de constituirmos uma profissão que perturba a "simetria do poder, o alinhamento dos espíritos e o perfeito nivelamento das consciências". Quer dizer, curiosa e paradoxalmente, invocarem-se assim para pôr termo ao nosso destino razões que se filiam na nossa independência e sadio inconformismo, na nossa recusa de "verdades" definitivamente "feitas" e de comportamentos estratificados, em suma invocou-se como razão de morte justamente aquilo em que se enraíza a nossa força e vitalidade. As profecias não se têm, no entanto, cumprido. Pode, assim, pôr-se legitimamente a dúvida sobre se com essas profecias se tem querido projectar no futuro os resultados de uma análise que se pretenda sociologicamente objectiva ou se, muito ao contrário, não constituirão frequentemente as mesmas simples reflexo condicionado do desejo de muitos que, em todos os tempos, se têm sentido incomodados pela independência dos advogados e que por isso mesmo não raro nos têm chegado a qualificar como "gente perigosa". De toda a maneira, creio bem que a nossa profissão continuará a existir. Ou, se o contrário vier a suceder, é porque com ela terão morrido "coisas" extremamente importantes que estruturam e modelam toda uma concepção de vida, e sem as quais esta não valerá a pena ser vivida. Julgo que nós advogados desempenhamos efectivamente uma função indispensável no processo de administração da justiça, que sem a nossa intervenção seria radicalmente afectado, entraria em desequilíbrio global, e nunca poderia ser aquilo que se impõe que seja. Pode acrescentar-se que a nossa profissão até se reveste hoje de mais largo e significativo alcance social face à crescente complexidade do direito e às cada vez maiores exigências de tecnicidade que lhe são associadas. Por outro lado, indo mais longe, podemos ainda afirmar que, num mundo frio e desincarnado, que se multiplica em relações sem alma nem rosto, nós somos dos últimos redutos daquele humanismo por que de cada vez mais generalizadamente se aspira.(5)».

Parece óbvio que, passados 35 anos destas palavras, elas mantêm uma singular actualidade até porque radicam no que de mais fundo tem a profissão de Carlos Lima. Mas, ao mesmo tempo, é um impressionante e profético aviso – desafio àquilo a que estamos a assistir e que não cabe aqui comentar – o que ele lança ao concluir nessa mesma intervenção: «O carácter fortemente personalizado do nosso trabalho profissional, a aproximação humana, disponibilidade e confiança que supõe, a compreensão e intimidade profunda em que se traduz, tudo isto corresponde a anseios actuais e bem marcados da humanidade, que, em definitivo, se recusa a deixar reduzir ao anonimato aritmético das estatísticas. Não nos venham, pois, dizer com displicente auto-suficiência, e pretendendo profetizar mais uma vez, que a nossa profissão fez o seu tempo, pois muito pelo contrário, estamos em consonância com o pulsar e anseios mais fundos do nosso tempo, tendo por direito próprio um lugar insubstituível em toda e qualquer sociedade que se pretenda realmente livre. É importante manter bem desperta a consciência de que as coisas são assim, de que ilustramos uma filosofia de vida rica de valores, fundada no primado do homem e no seu aprofundamento íntimo. Mas é igualmente importante avivar a consciência de que tudo isso implica graves responsabilidades e deveres, reconhecendo ao mesmo tempo com corajosa humildade que nem sempre são assumidos nos termos desejáveis, mas que se impõe que o sejam cada vez mais, na plenitude do seu significado e responsabilização.»(6).

Com todo este sedimento axiológico foi possível, então, alicerçar o trabalho do Bastonário Carlos Lima e a liderança da Ordem dos Advogados e do seu Conselho Geral, de que eu fui um dos membros, hoje mais ainda capaz de conhecer o significado daquele exercício institucional e ler mais de perto o carácter forte, determinado, esclarecido e corajoso ali revelado em inúmeras situações, além de cimentar a amizade.

Doutrina sobre a importância da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a duplicidade das Nações(7). Tão depressa intervém em defesa democrática de Ministro agredido, como, nas mesmas circunstâncias, proclama a necessária independência da Magistratura Judicial, verberando os comentários desprimorosos feitos sobre o Juiz e a tentação da justiça popular(8). Manifesta em diálogo leal a independência da Ordem perante o poder político e o Ministro da Justiça, mesmo em delicadas questões financeiras(9). E não hesita em alertar já para o «fenómeno de "desmobilização" das pessoas em relação ao interesse que é fundamental seja suscitado pela carreira da magistratura judicial» e para que «magistrados em exercício enfrentam frequentes situações de frustrações» e que «o ingresso na magistratura não consegue motivar quase ninguém»(10), assim contribuindo para a discussão de tema que se mantém candente, ainda que com vertentes às vezes opostas, a partir do mais elevado sentido da Instituição na participação da melhoria da administração da Justiça, vale dizer em defesa daqueles que a pedem e que os Advogados representam. Nessa mesma senda dá um especial relevo à participação da Ordem na feitura das leis, designadamente pelo empenhamento da Comissão de Legislação que minuciosamente acompanha(11).

Reestrutura muito dos serviços da Ordem e reequilibra as suas finanças(12), dando permanentes contas aos Advogados dum modo pioneiro(13). E promove, trabalhando ele mesmo, uma larga preparação para um novo Estatuto da Ordem, cujos trabalhos, para que «possam constituir a indispensável base para a reforma do regime jurídico da profissão», como almejava já no seu programa de candidatura, são dados a lume(14) para terem um novo diploma já no tempo do seu sucessor(15).

Mais do que o dobro do tempo de profissão decorrido desde este frutuoso período ao serviço da sua Ordem, mantém o Dr. Carlos Lima um exercício da Advocacia que é um exemplo para os que nela labutam, como o é para quem o conhece como Homem, tudo apesar do denodado apagamento com que timbra e deseja marcar a sua vida simples. Percurso vital que os seus amigos lhe agradecem e a comunidade deve agradecer.

 

Notas:

(1) Discurso de tomada de posse como Bastonário da Ordem dos Advogados em 06.01.1978, in Revista da Ordem dos Advogados, 38-11.

(2) Ibidem, pág. 12.

(3) Ibidem.

(4) Ibidem, pág. 14.

(5) Ibidem, págs. 15/16.

(6) Ibidem, pág. 16.

(7) In Revista da Ordem dos Advogados, 40-209/213.

(8) Comunicado do Conselho Geral de 28.04.78 a propósito da agressão de que foi vítima em Ponta Delgada o Ministro Dr. António de Almeida Santos, in Revista da Ordem dos Advogados, 38-183/184.

(9) Cf. p.ex. in Revista da Ordem dos Advogados, 38-677/691.

(10) In Revista da Ordem dos Advogados, 695.

(11) Cf., p.ex., Revista da Ordem dos Advogados, 39-127/162 e 41-7/8.

(12) Cf. Revista da Ordem dos Advogados, 41-10/11.

(13) Vide, p.ex., Revista da Ordem dos Advogados, 38-657 e segs., 39-184 e segs., 239 e segs., 500 e segs., 715 e segs., 40-571 e segs., 791 e segs., etc..

(14) Cf. Revista da Ordem dos Advogados, 39-368 e segs. e 393 e segs. e 40-469 e segs. e 743 e segs..

(15) O Bastonário José Manuel Coelho Ribeiro, que fora 1.º vice-presidente do seu Conselho Geral. A seguir o também vice-presidente do seu Conselho Geral, o Bastonário António Osório de Castro, viria a ocupar o cargo.

 

In: LIMIANA - Revista de Informação, Cultura e Turismo n.º 32, de Abril de 2013

 

 

 

 

 

 

Ponte de Lima no Mapa

Ponte de Lima é uma vila histórica do Norte de Portugal, mais antiga que a própria nacionalidade portuguesa. Foi fundada por Carta de Foral de 4 de Março de 1125, outorgada pela Rainha D. Teresa, que fez Vila o então Lugar de Ponte, localizado na margem esquerda do Rio Lima, junto à ponte construída pelos Romanos no século I, no tempo do Imperador Augusto. Segundo o Historiador António Matos Reis, o nascimento de Ponte de Lima está intimamente ligado ao nascimento de Portugal, inserindo-se nos planos de autonomia do Condado Portucalense prosseguidos por D. Teresa, através da criação de novos municípios. Herdeira e continuadora de um rico passado histórico, Ponte de Lima orgulha-se de possuir um valioso património histórico-cultural, que este portal se propõe promover e divulgar.

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